domingo, 29 de março de 2009

O dia em que comi borboletas

Botei o despertador para 8h30, ou seja, para 9h30, já que o horário de verão, aqui chamado de “ora legale”, entrou em vigor de madrugada. O engraçado é que, aqui, a mudança de horário não se dá à meia-noite, mas às duas da manhã. Será que esse mesmo horário, com duas horas de acréscimo, vale também para o retorno de Cinderela para casa?

Fiz um pequeno esforço para sair da coberta quentinha e me dirigi à sala de café da manhã, onde meu pratinho, com um carioquinhazinho (deve ser um terço do nosso carioquinha) e um croissant, já estava me esperando. Na pensão, não tem boca livre, não. Cristina preparou um cappuccino, peguei dois tabletes de burro, quer dizer, de manteiga, e pronto. O bom é que a gente não enche a pança como costuma fazer nos cafés da manhã dos hotéis mais chiques.

Cristina disse que eu não precisava sair exatamente às 10h30, conforme indicado nos cartazes, que eu poderia sair às 11h ou um pouco mais, e eu aproveitei esse tempo para dar uma entradinha na internet, responder uns e-mails e praticamente zerar a minha caixa de entrada. Não queria deixar nada pendente, pois eu não sabia se teria acesso na casa da senhora Bigi.

Saí do Tourist House, na Via della Scala nº 1, simples mas que recomendo a todos, de mala e cuia de cabeça pra baixo, ou seja, com um guarda-chuva. Desde ontem no final de tarde que chove em Firenze e, enfim, pude inaugurar meu guarda-chuva verde, embora tenha dado não mais que vinte passos debaixo dele, pois havia uma parada de táxi logo na rua transversal (lembrem-se de que, aqui, encontrar ruas paralelas ou perpendiculares é uma raridade). Todos os táxis que peguei até agora na Itália custaram entre 9 e 11 euros. Normalmente o que pago em Brasília. Não, não façam a conversão, eu já disse que “quem converte não se diverte” e, além do mais, estou cultivando dentro de minha cabecinha imaginativa o pensamento de que eu devo ganhar em euros. Não, não há nada de absurdo nisso. Absurdo seria desejar ganhar em libras esterlinas.

O táxi me deixou, ainda debaixo de chuva, em frente ao número 13 da Via de Monte Oliveto, e qualquer pessoa pode ver, no Google Maps, uma panorâmica da rua em que estou hospedado [basta clicar no link "vista da rua" que aparece dentro do balaõzinho branco]. Toquei a campainha e a senhora Bigi abriu automaticamente a porta, descendo em seguida para me recepcionar na sala de espera do prédio. Subimos, de elevador, até o segundo andar. Bigi simplesmente desandou a falar italiano e eu estava só esperando o momento em que ela dissesse, em inglês, “may I continue speaking italian?”, “posso continuar falando italiano?”, ou, pelo menos, “capisce?”, “está me entendendo?”, mas esse momento nunca aconteceu. Sorte minha que eu conseguia entender quase tudo que Bigi falava. Alguns minutos mais tarde, quando estávamos sentados à mesa da sala, só pra me certificar, perguntei “parla inglese?”, “fala italiano?”. “Non, non”. E eu achei maravilhoso, porque não poderia usar o inglês, que tem sido minha muleta durante esses dias de viagem. Na casa de Bigi, não terei alternativa: comunicação só em italiano, por mímica ou telepatia.

Meu quarto é pequeno (entre 12 e 15 metros quadrados), mas muito simpático e bem distribuído. Tem uma cama de solteiro, rodeada por uma prateleira (excelente para colocar livros, revistas, dicionários, guias de viagem...), uma mesa com tampo de vidro ampla o bastante para o abajur, o notebook, o mapa de Firenze, a água e outras coisinhas mais, e dois armários apropriados para guardar de tudo: sapatos, roupas, cabos (impressionante a quantidade de cabos, carregadores e adaptadores que eu trouxe), mochila e mala. Também tem um aquecedor (fundamental, embora o quarto e a casa, como um todo, pareçam naturalmente quentinhos; ou será que o aquecedor já está ligado?). Mas o que me cativou foi a janela de vidro que cobre toda a extensão da parede e que, mesmo com a cortina, que é verde e creme e translúcida, permite ver uma árvores altas e lindas, e as sacadas do prédio vizinho, muito bem arborizadas. A mesa defronte da janela me pareceu o lugar perfeito para escrever e para outra coisinha: desenhar.

“Você desenha?!” Sim, não, quer dizer, mais ou menos. Eu gostava de desenhar e pintar quando criança, até colocava meus quadros na parede. Mas por volta dos 9 anos, o desenho e a pintura sumiram da minha vida. Em Teresina, em determinada época, eu decidi desenhar todo dia. Devo ter feito isso por uns sessenta dias seguidos, fazia parte da minha rotina maravilhosa de acordar sem despertador, caminhar à beira-rio, beber uma vitaminada caprichada, fazer um cocozinho, tomar banho ouvindo rádio, fazer a revisão diária do pathwork, meditar e desenhar. Só depois disso tudo é que eu ia para a universidade. Eita vidinha boa aquela! Preciso tê-la de volta qualquer dia desses. Melhorada, é claro.

Mas voltando ao desenho e à pintura. Tudo em Firenze convida a isso. Os museus, as galerias, os artistas produzindo no meio da rua, as cartolerias (papel aqui se chama “carta”) cheias de cadernos, lápis, tintas e pincéis. Então bateu novamente a vontade de desenhar.

Conversando com Bigi, acertei os detalhes da estadia: café da manhã, chave do apartamento, etc. Fiz parte do pagamento e perguntei sobre ônibus para o Istituto Italiano (tem um que pára aqui na esquina e vai até a porta do Istituto), sobre algum supermercado nas proximidades (tem um a menos de 500 metros) e sobre internet (Bigi disse que ainda não tem, mas que já havia encomendado, embora o tempo de instalação possa levar uma semana). Depois da conversa, resolvi sair para meu programa preferido na Itália: caminhar. Só que eu tive de dizer isso em italiano, com a ajuda de Bigi, claro: “Io vado passegiare per vedere d’intorno”. Claro que deve ter um tanto de erro aí, mas já era um bom começo: “vou passear para ver a vizinhança”. E fui.

Comecei pelo supermercado. Estava curioso pelo nome. Bigi tinha dito algo como “S lunga”, e eu estava me perguntando se a bodega de Seu Lunga, o famoso antipático do Ceará, já tinha filial internacional. Talvez. O nome do supermercado é “esselunga”, que quer dizer... não faço a mínima idéia. Dei uma entradinha só pra ver quão grande era. Uma espécie de Mercadinho São Luiz do tempo em que havia mercadinhos São Luiz. Saí sem comprar nada, pois voltaria mais tarde.

Decidi pegar o ônibus para ensaiar o trajeto que farei amanhã para o Istituto Italiano. Era o ônibus de número 6, que passou logo, logo. Em Roma, só peguei metrô. Em Bologna, era possível comprar a passagem, de 1 euro, no próprio ônibus, colocando moedinhas numa máquina. Quando o bilhete era cuspido da máquina, era só convalidar. Na Itália toda existe essa mania: você compra o bilhete, de trem ou de ônibus, mas tem que convalidar numa maquininha que dá uma mordida no bilhete e registra a data, a hora, o ônibus, o pai, a mãe... Isso tudo, me parece, apenas para desempregar o trocador. Coisa de gente civilizada: você pode andar no ônibus sem pagar, se quiser. Só torça para não aparecer alguém fiscalizando. O valor da multa é de não sei quantas passagens. Mas o fato é que entrei no ônibus 6 e não havia a maquininha de vender bilhete, só a de convalidar. Tive que me dirigir ao motorista, que me vendeu um bilhete por 2 euros (já falei pra parar de ficar convertendo em reais, assim você não vai se divertir). Mais tarde descobri, comprando um outro bilhete numa tabacaria, que o bilhete normal custa 1,20. Eu pagara 80 centavos a mais por um “biglietto a bordo”. Aqui custa caro falar com o motorista.

Desci do ônibus na Via de Martelli, a rua do Istituto, praticamente de esquina com o imponente Duomo, e fiquei pra lá e pra cá tentando localizar o número 4. Niente! Nada. Resolvi não me preocupar com isso, e nesse exato momento senti falta de minha câmera fotográfica digital. Não, eu não tinha sido roubado, havia deixado a câmera em casa mesmo. Mas é que lamentei o fato de não poder tirar uma foto dos guarda-chuvas. Eu pensei que eu era o rei da cocada colorida, a única pessoa na Itália a ter um guarda-chuva de uma cor chamativa. Quanto engano! A rua estava pintada de guarda-chuvas de todas as cores. Pense numa cor... ela estava lá: branca, preta, marrom, lilás, verde, amarela, azul, vermelha... E não bastasse haver todas as cores, ainda havia combinações de cores: guarda-chuvas vermelho com branco, azul com amarelo... Está achando pouco? Pois também havia guarda-chuvas de múltiplas cores, como se fosse um arco-íris. Que espetáculo! E como era bom participar daquela explosão de cores com meu discreto guarda-chuva verde. Para vocês terem noção da importância dessa aquarela, tenho que lembrar que as cidades italianas que conheci até agora são todas em tons pastéis. Não vi nenhuma casa, prédio ou apartamento pintado de verde, azul, amarelo. Tudo vai de um vermelho barro a um cinza, passando pelo creme. Agora, a beleza tem seu preço, e o preço eram os esbarrões de guarda-chuvas naquela multidão que circulava pelas ruas do centro histórico de Firenze. Eu tinha que procurar imediatamente um refúgio. Adivinhem o que encontrei?

Isso mesmo, uma libreria: seca, quentinha, enorme, lotada de livros. Logo após a porta, um monte de guarda-chuvas e sombrinhas no chão. Aliás, uma repetição do que eu tinha visto no supermercado: um monte de guarda-chuvas acumulados na entrada. Eu fiquei naquela, deixo-não-deixo, deixo-não-deixo, deixo-não-deixo... deixei. Envolvi-me tanto com os livros que até me esqueci que tinha deixado um guarda-chuva na porta. Dei uma olhada geral em todas as sessões da livraria, que eram muitas. Fiquei particularmente atraído por um livro com as fábulas de Andersen e por um manual de desenho. Também dei uma olhada nos dicionários de italiano (já está na hora de começar a usar um dicionário italiano-italiano). Mas resolvi não comprar nada, esperar pra ver como será o primeiro dia de aula, que tipo de material terei disponível no Istituto, coisas assim. E, ao sair, não é que meu guarda-chuva ainda estava lá, verdinho, verdinho.

Voltei para a chuva, mas apenas por poucos metros. Parei na frente de um restaurante pra olhar o menu, que sempre fica exposto na rua.

“O teu sorriso se abre feito uma borboleta”, “Tu sorriso si sfana feito una farfalla”. Quem assistiu e amou “O Carteiro e o Poeta”, há de lembrar dessa frase. E foi dela que lembrei quando vi “Farfalle de alguma coisa” no menu. Então, naquele restaurante, eles serviam borboletas? Não pensei duas vezes. Entrei já com água (colorida) na boca. Enquanto as borboletas não vinham, fiquei ansioso. Como seriam? Estariam já mortas ou ainda vivas? Viriam dentro de uma cúpula de vidro? Eu as comeria com uma espécie de canudo de boca bem larga? Que tipo de tempero elas tinham? Quase não acreditei quando o garçom colocou o prato sobre a mesa. Aquilo era melhor do que eu tinha pensado. Era uma massa no formato de borboletas. Dezenas de pequenas borboletas em meio a um molho branco e pequenos camarões. Espetei uma borboleta e pus na boca. Meu sorriso se abriu feito uma borboleta. Que delícia! Depois outra, e outra. As borboletas voavam cada vez mais rápido do chão do prato para o céu da minha boca. Até que... não havia mais borboletas no prato, apenas o gosto macio de dezenas de guarda-chuvas coloridos na minha boca.

Continuando o ensaio de rotina, tomei o rumo de volta para casa, a pé. Esse é meu pensamento, pelo menos enquanto o tempo estiver frio e fechado: ir de ônibus e voltar a pé, aproximadamente dois quilômetros e meio. Caminhei na direção do rio Arno, passando por uma espécie de Beco da Poeira (só lembrei da minha mãe) de Firenze. Cruzei a Ponte Vecchio e tomei a primeira paralela ao Arno, que na verdade é uma transversal ou radial (vocês sabem, eu já falei demais da geometria urbana da Itália). Essa rua vai dar direto no supermercado do Seu Lunga, onde comprei Activia (ah, essa globalização), torradas (para o jantar), chocolate (para qualquer hora) e sabão em pó (para lavar meias e cuecas). Devo confessar que também comprei papel, lápis, apontador e borracha. Sim, não resisti ao desejo de desenhar. O bloco de papel 200g está aqui ao lado do notebook em que escrevo. À esquerda, dentro de um copo, estão os lápis, a borracha e o apontador. A janela, em frente, espera só que eu abra as cortinas. E, qualquer hora dessas, eu volto a ouvir o ruído gostoso do lápis sobre o papel.

7 comentários:

  1. Querido,
    uma alegria enorme inundou meu coração em te "ouvir" (o ruído gostoso do lápis sobre o papel) desenhando.
    Até serviu pra empurrar um pouquinho a tamanha saudade pro lado. Essa chata que fica me apertando o peito.
    Beijos de muitas muitas borboletas desenhadas em todo você.

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  2. Junoca, foi bem divertido esse dia. Confesso que nunca tinha comido uma prato de massa em formato borboleta, usando, alem do olfato e paladar, poesia. Beijos.

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  3. Querida, talvez desenhar fique mais fácil agora que a estou associando à música. :) Grato.

    Ceíta, também me surpreendi com a poesia que voou do prato. :)

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  4. Fiquei com vontades... Um monte delas! Mas a mais danada é essa de botar o olho nesse menu e borboletear um pouco. Bjs!

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  5. Carla, coisa boa é encher-se de vontades. Ter vontade já é começar a abrir as asas para borboletear. :)

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  6. eu queria saber que loucura é essa de comer borboletas,eu não teria corage de comer borboletas.E bom?

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  7. Delicioso. Ainda mais se as borboletas são feitas de pasta italiana. :)

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