quinta-feira, 30 de abril de 2009

Silêncio, por favor


Terça-feira em Lucca.


Quarta feira na Via dell'Amore.


Mais Via dell'Amore.


Ainda a Via dell'Amore.


Logo depois da Via dell'Amore.


Quinta-feira em Pisa.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Mas que cidade é essa?!

Os mineiros é que têm razão quando chamam tudo de trem, porque trem é paisagem. Se o vagão está vago, então... é paisagem com direito a tirar os tênis e esticar as pernas sobre o assento da frente. Ainda não encontrei, aqui pela Toscana, uma paisagem tão deslumbrante quanto a dos filmes, ou pelo menos quanto às de Minas, mas já está melhorando...



Lembrete para mim mesmo: evite chegar numa nova cidade aos domingos, noites e feriados, pois postos de informação e lojas estão fechados. Lembrete 2 para mim mesmo: com bagagem, não pense duas vezes e pegue um táxi.

Deixei a mala no hotel e andei na direção da praia. Essa foi a minha primeira visão do mar mediterrâneo. E foi a primeira vez que eu lembro de ir pra praia de tênis e calça comprida.



Quando cheguei mais perto da água, resolvi dar um giro de 360 graus. Parece até que as pessoas tinham se preparado para serem filmadas.



Resolvi caminhar, mesmo de tênis e na areia fofa. E eu, cearense besta, que pensava que as barracas da Praia do Futuro eram o máximo estendido na areia! Aqui as barracas são verdadeiros hotéis, com direito a chalé, e enfileiradas: quase não se consegue um espaço para entrar ou sair da praia.



Os donos de barraca chegam ao cúmulo de lotear a praia. Pode?!



E botam gente pra passar o rodo e eliminar a sujeira e a ondulação da areia.



Agora... que é um belo conjunto de praia, hotéis-palacetes e montanhas, ah, isso é. E o guindaste de sempre, claro.



Caminhei um tanto, esperando o sol se pôr, mas ele estava muito lento. Lembrei de um poema que fiz e que Fabiano musicou. Mas só consegui lembrar do refrão.



Na saída da praia, sentei num banquinho pra tirar a areia do tênis. Fiz isso numa alameda larga e bonita, boa pra passear.



Quando essa alameda acaba, a gente faz um desvio e cai numa rua paralela (sim, aqui existem paralelas!) que é um verdadeiro shopping Center, uma Monsenhor Tabosa chic à beira-mar. Não me agradou muito, não tirei foto, abri meu mapa e, vendo que havia uma espécie de parque na paralela seguinte, saí da orla.

Fiquei impressionado com o parque, ou bosque, chamado Pineta de Ponente. Fiz um videozinho de uma das encruzilhadas (de perpendiculares!).



Depois dos caminhos de terra, peguei uma rua de asfalto à direita. O pessoal aqui parece que gosta muito de asfalto. Até calçada asfaltada tem. Esse asfalto dentro do bosque era até simpático.



Ao lado da estrada, um verdadeiro comércio: parquinhos de diversões, aluguel de bicicletas... Tudo fechado, já que era praticamente noite de um feriado nacional. Achei curioso esse restaurante com um “prezzo manicomio”. Coisa de louco!



No caminho de volta para o hotel, fiquei tentando entender que tipo de cidade é esta. Não se parece, no total, com nada que eu tenha visto: praia-bosque-montanha, antiga-colorida-chic... Não sei como definir. Resolvi tirar uma foto de uma rua que me pareceu “típica”.



Na volta para o hotel, ainda passei por uma outra rua completamente comercial, que deve ter sido uma loucura mais cedo, num sábado de sol. Por volta das 8 da noite, eram só os comerciantes fechando as portas. Tirei a foto de uma loja com o nome de minha prima, que é um nome que gosto muito, pra servir como exemplo da tal rua.



No hotel, estava cansado e com aquela quentura típica de quem pegou sol demais. Vontade de deitar na cama e fazer nada. Foi quando percebi o que fiz durante a tarde, andando, vendo, fotografando... Eu estava tentando esquecer Firenze, estava tentando sobrepor novas experiências e imagens, estava tentando driblar a saudade.

Resolvi parar de me enganar e dediquei dia seguinte, domingo, ao descanso, a fazer o derradeiro diário de Firenze, a ouvir música... Fiquei o dia quase todo no hotel. Só saí para ver um filme, porque cinema é outra coisa que me coloca no eixo.

O horário que peguei na internet estava errado. Cheguei meia hora antes do filme começar. Entrei na sala pra esperar e tomei um susto. O cinema me lembrou, guardadas as devidas proporções, o Cine São Luiz, de Fortaleza. Foi o primeiro cinema italiano que gostei assim logo de cara.



Enquanto o filme não começava, saquei meu iPod e li uma das palestras do Pathwork. Coisinha que também me devolve ao centro de mim mesmo.

O filme era uma comediazinha romântica, divertida, de sessão da tarde. E o cara da projeção esqueceu de dar o tradicional intervalo de cinco minutos no meio do filme, que tanto me enerva. Só apareceu o sinal de intervalo já perto do filme acabar. E não durou nem um minuto.



Saí do filme com uma música na cabeça. Aqui na Itália tem sido difícil encontrar boa música, melhor dizendo, boas canções, já que vi coisa boa instrumental. Mas saí do cinema com a referência de uma canção: Qualcosa che non c’è, de Elisa Tiffoli. Ainda um pouco chorada demais, mas tem uma letra bonita.



Já mais centrado, no hotel, consegui visualizar minha semana: fazer pequenas visitas a Lucca, Pisa e Cinque Terre na terça, quarta e quinta-feira, que serão dias mais nublados. Sexta-feira, que promete ser sol, fico aqui por Viareggio. E, no sábado, vou para Siena, passar um ou dois dias, a caminho de Perugia/Assisi.

sábado, 25 de abril de 2009

A chuva que não veio do céu

A previsão do tempo para sexta-feira era de frio e chuva em Firenze. Mas o dia amanheceu azul, e não era mais um erro dos meteorologistas. É que alguns acertos precisam de paciência para serem compreendidos...

No café da manhã, comi pouco. Ainda estava digerindo o jantar de despedida da noite anterior. Um professor e 19 estudantes comemos tudo a que tínhamos direito: pão, salada, sopa, pasta, carne (nem todo dia se consegue ser vegetariano) e doce.

A caminho do restaurante, pôr-do-sol ao longo do Arno.


Final do jantar, com as pessoas se levantando para tirar fotos. Foi tirada uma foto da turma toda, que depois será enviada a todos. Por enquanto, essa.


Um holandês muito gentil e simpático chamado Erwen. Sempre nos encontrávamos na sala de estudo: ele estudando, eu na internet.


Derradeiro dia de aula. Barbara nos entregou a prova, que havíamos feito ontem, corrigida. Ela não deu nota, mas consegui acertar uns 80%, o que está ótimo para quem praticamente não estudou em casa. 10:30 saímos para um café numa livraria vizinha. Momento de conversar um pouco e de tirar algumas fotos.

Da esquerda para a direita: as alemãs Lea, Franziska e Ilona, eu, professoressa Barbara e o casal brasileiro Maíra e Eduardo.


Eu entre minhas lindas e bravissime professoresse Barbara e Emanuela.


No início da aula de conversação, reunimos as duas turmas para um pequeno número musical. Eu havia feito a versão de uma canção de ninar minha e havia ensaiado com o australiano Simone, que não veio. O professor Duccio, que havia nos levado ao jantar de ontem, gentilmente aceitou o convite para me acompanhar ao piano. Meu xará Eduardo fez a gravação.


Que estranho eu falando italiano! Mas foi um momento muito emocionante. Barbara e Ilona choraram. Eu me segurei.

Depois das aulas, desci a longa escadaria da escola e senti uma dor no coração quando a pesada porta de ferro se fechou atrás de mim. Fiz o agradecimento que sempre faço aos lugares que deixo, passei na livraria para comprar um livro de exercícios de italiano para praticar no meu retorno ao Brasil e depois fui cumprir um compromisso...

Luiza me havia escrito há alguns dias: “Concordo e partcipo desse seu desejo de ‘não ser turista’, mas gostaria muito que você fizesse uma visita, por mim. É para a Pietá, do Michelangelo, no Museo dell"Opera del Duomo... Grata.” É difícil recusar um pedido da Luiza, e esse, em particular, era impossível recusar. Luiza possivelmente não sabe, mas a Pietá (uma das várias que Michelangelo fez) sempre esteve ligada emocionalmente a uma cena que aconteceu na varanda da casa da própria Luiza. Faz uns 10 anos. Eu estava frustradíssimo após uma temporada de trabalho na Serra da Ibiapaba, e chorei bastante contando a história para Luiza na varanda de sua casa. Luiza, que sempre tem a palavra certa para a hora certa, dessa vez não disse nada. Simplesmente se levantou, caminhou até mim e se curvou, abraçando-me. Se Michelangelo estivesse ali, teria tido vontade de fazer mais uma Pietá, mais uma imagem da Mãe de Jesus acolhendo seu filho exausto.

E, de certa forma, foi também assim que me sentei no banquinho de madeira da sala da Pietá no Museu dell’Opera del Duomo. Exausto, não fisicamente, mas emocionalmente. Morto de saudades dessa cidade que eu estava para deixar. Como o próprio Cristo, fechei meus olhos e abandonei meu cansaço, certo de estar sendo seguro pela presença firme e comovida de Luiza e de cada uma das grandes mulheres que tenho o privilégio de ter nesta vida.

A tarde foi de correria. Preparei um pacote de 7 quilos, com coisas que não me seriam mais úteis durante o restante da viagem – livros, revistas, guias, meias, cuecas, cabos... – para enviar pelos correios. Depois fiz um bucato de roupa e levei pra lavar na Wash&Dry. Quando voltava para casa, um saco em cada mão, encontrei com o sol, que começava a se pôr. A Via Pisana dava direto para o pôr-do-sol. E, mesmo cansado da correria, me veio a idéia de assistir ao entardecer do Piazzello Michelangelo. Peguei o 12, que serpenteou o monte, entre árvores, até o topo. Saí do ônibus e o sol já era posto. Eu estava no crepúsculo ou, como diz Fabiano, no “encontro do claro com o escuro”. O céu continuava aberto, com uma ou outra nuvem. E foi quando pisei na calçada mais à direita do Piazzello Michelangelo que aconteceu. Foi quando eu soube que os meteorologistas estavam certos. Foi quando eu percebi que todas as nuvens cinzas que deveriam estar no céu estavam, na verdade, em meu peito. Foi quando lembrei das nuvens que já haviam chovido dos olhos de Barbara e Ilona. E foi quando também meus olhos choveram a chuva que não vem do céu. Chuva com trovões de soluços, que me fez apoiar sobre a mureta para não cair. Chuva para a qual o vento seco da Itália foi, pela primeira vez, um carinho, um afago de Mãe. Chuva igual a essa que chove agora só porque me lembro e escrevo.

*

Não peguei o 13, que me levaria mais rápido para casa. Peguei novamente o 12, que ainda circularia toda a cidade antes de me deixar próximo à Via Monte Oliveto. Da flor que é Florença, o 12 foi o Circular. O circuladô de fulô.

E mesmo cansado, mesmo com sono, adiei ao máximo a hora de dormir. Simplesmente porque não queria acordar e ter de partir de Firenze.

*

Acordei sem despertador. Para o derradeiro café com Bigi. Dei-lhe um regalo, meu livro A Concha e a Borboleta com a tradução italiana escrita a lápis em cada página. Depois fui ao centro comprar, no camelódromo, uma camisa violeta com o símbolo de Firenze em dourado, para que eu tenha sempre no peito a cor e a imagem desta cidade querida.

Uma foto com Bigi. Um táxi à minha espera. Mais um ruído de porta fechando. Mais um agradecimento. Mais chuva em mais um dia ensolarado. E a espera na estação Santa Maria Novella. A espera por um trem que me levaria para longe de Florença. Ah, eu poderia ter esperado dias, meses, anos por aquele trem. Poderia ter me tornado um senza dimora, um sem-teto fiorentino. Mas o trem veio logo, e eu fui com ele. Vim? Já faz quase um dia que estou em Viareggio, e parece que ainda não estou aqui.


quarta-feira, 22 de abril de 2009

Três cuecas e três pares de meia

Domingo. Enquanto eu esperava por Vanessa, um casal japonês (ou chinês, ou coreano, nunca se sabe) fazia seu book de casamento junto à enorme porta da catedral do Duomo.

Era pra ser só um café da manhã quase almoço, pouco depois do meio-dia, num restaurante na praça do Duomo, mas a Vanessa falou: “Vamos pra Milano?” Eu devo ter olhado pra ela com aquela cara de “não tô nem louco de deixar Firenze”, e ela acrescentou: “eu garanto o hotel”. E eu ainda pedi 5 minutos pra pensar.

Eu sei que qualquer pessoa diria “sim” sem nem piscar, mas gente... é minha derradeira semana em Firenze. E Firenze é... bem, deixa pra lá. Depois de dois cappuccinos, uma insalata e uma corrida de táxi, eu disse a Vanessa que sim. Arrumei a mochila da maneira mais rápida e desarrumada possível, e entrei no ônibus.

Durante a viagem, eu não parava de pensar... Quem deveria estar aqui era o Fábio. Ele seria um músico entre músicos. Ele correria o risco de nunca mais sair desse ônibus e de abandonar de vez a engenharia. “I wish you were here, Fábio”, eu repetia em pensamento. E quando Léo, o técnico de som, colocou pra tocar o DVD do Pink Floyd, e Kassim plugou o adaptador-estrela que permitia 6 fones de ouvido no mesmo aparelho, éramos todos ouvidos a esse belo show, com direito a “I wish you were here”, Fábio.

No dia seguinte, já cheio de saudade de Firenze, fui logo pela manhã comprar minha passagem de trem de volta. Sob a garoa de Milano: São Paulo pura. E quando eu desci do ônibus 60, em frente à estação, eu boquiabri-me. Isso é não é uma estação de trem, é um palácio.



Segunda-feira à tarde, a passagem de som, que foi um verdadeiro show. Primeiro a banda brincou à vontade, depois Vanessa entrou e cantou de tudo (Donato, Caimmi...), mas principalmente Djavan. Lembrei de uma conversa no Rio, quando ela havia dito que não se sentia muito à vontade pra gravar outros compositores, principalmente os clássicos. Mas Vanessa cantando Djavan é simplesmente delicioso.



Gastei toda a memória da câmera na passagem do som. À noite, fui ao show sem câmera. Devo ter sido o único. Fiquei pensando se Julio, o iluminador, leva em conta aquele monte de displays acesos ao fazer sua escolha de luzes. Aliás, o Júlio simplesmente arrasou: fez uma iluminação de cair o queixo em “Eu sou neguinha?” Ah, quem apareceu por lá foi o Ronaldinho Gaúcho. Não quis aparecer muito no palco, mas trocou uma reverência mútua com Vanessa.

Depois do show, não quis me juntar à turma para o jantar pós-show e voltei andando para a cama. No domingo, havia dormido no hotel. Na segunda, devido a um mal-entendido, dormi no ônibus mesmo com o quarto estando disponível pra mim. Então anotem aí mais um item na minha lista de hospedagens dessa viagem: albergue em Roma, casa de desconhecido e hotel com internet de 5 Euro por hora em Bologna, hotel de duas estrelas com internet no quarto (o melhor hotel até agora) e casa de Bigi em Firenze, hotel quatro estrelas e ônibus de turnê em Milano.

No escuro do ônibus, felizmente a câmera ainda me deu um minutinho de memória pra gravar uma música que estava nascendo na minha cabeça. Numa pequena viagem musical de dois dias, foi bom concluir a noite com início de música nova. Vejam aí a ultrassonografia de uma canção que talvez nasça daqui a algum tempo. Tem cara de menino, mas desconfio de que será uma menina.



Terça-feira pela manhã, me despeço da turma que já acordou e deixo um bilhete alaranjado para Vanessa, agradecendo o aventureiro desvio de rota.

Outra coisa boa da vinda a Milano: andar no Freccia Rossa, o bonito trem de alta velocidade italiano. Duas horas e dez minutos depois, eu estava em Santa Maria Novella, estação ferroviária de... Firenze. Ah, tem algo no ar de Firenze. Um clique de porta atrás das costas que faz a gente saber que entrou em casa.

Rearrumei a bagagem e fui até o Istituto. A primeira pessoa que vi foi minha querida professora Barbara. Depois, já na sala de estudo e internet, Erwen, Bernardete e Liliana. Coisa boa ver aqueles rostos. Pesquisei e reservei um hotel em meu – desculpe, Tia Monca – NOSSO próximo destino: Viareggio, uma praia ainda na região da Toscana, a hora e meia de trem de Firenze.

Também inaugurei o Skype do iPod. Parece que todo mundo adivinhou e estava online: Karina (com Kildare e Luís em casa), Mainha (com Biba, Tia Monca e Neima), Nininha, Felipe, Polyne, Alba. E eu nem lembrava que era feriado no Brasil. Viva Tiradentes, por ter me dado essa alegria de ouvir as vozes tão queridas e tão cheias de alegria. Nininha chegou a chorar. Amo vocês, gente.

E vamos lá... viajar!

Peraí, peraí! Tem que lavar as meias e cuecas do título! Normalmente, bastam duas cuecas e dois pares de meia. Usa um enquanto o outro seca. Mas, quando surge um imprevisto como essa rapidinha em Milano, é que a gente vê que melhor mesmo é ter três na bagagem.

domingo, 19 de abril de 2009

As portas da fantasia

Até o Inverno sente saudades de Firenze, e retorna de vez em quando com seu cinza, seu frio e sua chuva...

Quando sabiam que eu passaria dois meses na Itália, algumas pessoas me disseram para aproveitar e conhecer outros países: França, Alemanha, Portugal, Espanha... “É tudo tão pertinho”, diziam. E eu sempre respondia que queria mesmo ficar só na Itália, aprender o idioma, viver. Porque não me sinto muito bem no papel de turista, querendo conhecer tudo, ir a todos os museus, fazer todas as visitas “obrigatórias”. (Para vocês terem uma idéia, só fui conhecer o Cristo Redentor lá pela 3ª vez em que fui ao Rio de Janeiro.) Também não dou conta de viver como uma pessoa da outra cidade ou do outro país, simplesmente porque não idealizo a vida de um boliviano, de um peruano ou mesmo de um italiano; trabalham duro e têm seus problemas como todo bom brasileiro. Minha vontade era, e é, viver como se fosse eu mesmo, mas numa cidade diferente. Viver, claro, uma versão um pouco diferente de mim mesmo, um eu mesmo mais aventureiro, mais propenso a riscos, a descobertas, mas, fundamentalmente, eu mesmo.

Settimana scorsa, semana passada, foi assim em Firenze. Tanto que não me surpreendi muito ao ver que não havia tirado foto nenhuma. Eu estava simplesmente vivendo na cidade. Comecei a escrever meu primeiro texto – um conto tradicional – diretamente em Italiano, estudei para a scuola, invece simplesmente freqüentar as aulas, fui ao cinema e ao teatro, comprei um jogo de tabuleiro para enviar para minha irmã e cunhado, iniciei a leitura de um novo livro (Fiabe Italiane, do Ítalo Calvino)... E justo quando estava vivendo exatamente aquilo que eu tinha vontade, percebi que os dias da partida já estavam sendo contados, em contagem regressiva. E os dias têm sido, desde então, matizados por uma saudade invisível da qual tenho falado e que pode ser vista em meus olhos.

Fiz uma lista do que ainda deveria fazer em Firenze antes de partir dia 25. Uma lista até pequena, que começava com “subir à cúpula do Duomo” para ver a cidade de cima. Quase todo dia, da janela do 3º andar do Istituto Italiano, eu como uns deliciosos biscoitos olhando para a cúpula do Duomo, onde estão turistas corajosos, dispostos a subir mais de quatrocentos degraus, em espiral, para chegar ao topo de Firenze. Mesmo o Istituto sendo praticamente vizinho ao Duomo, os turistas, lá em cima, parecem pequenos, minúsculos, como se fossem de brinquedo. Eles olham para baixo, com suas câmeras fotográficas, enquanto eu olho para cima. E foi comendo um biscoito que me ocorreu que, talvez, o Duomo não tenha sido feito para se subir e para se olhar para baixo, mas para que se pudesse olhar para cima: uma desculpa para olhar o céu, encarar o sol, perceber nossa pequenez e, quiçá, compreender que o buraco é mais em cima. Então, quando fechei o pacote de biscoitos, fechei também a minha lista: cancelei de uma vez por todas minhas obrigações de turista.


Mas sempre sobra um farelo que atrai uma formiga que passa por qualquer porta. E um item da minha lista eu ainda desejava fortemente cumprir: ver a mostra “As portas da fantasia”, do artista plástico Giuliano Ghelli. Lembram daqueles manequins coloridos que eu havia visto num dos passeios ao longo do Arno? Pois é, entre um delicioso papardelle e meu primeiro iPod, fui ver a exposição, que até gratuita era. Numa cidade em que se paga por tudo, fiquei até envergonhado de não pagar nada para ver as obras de arte mais bonitas que vi até aqui, e comprei o catálogo da exposição.
São as cores, gente. A Itália que eu vi até aqui é carente de cores: é tudo muito pastel. É como os bustos do próprio Ghelli: lindíssimos corpos de mulher cravejados de fantasia, mas sem cor. Nas telas, as cores explodem como se fossem um carro atingido por uma colombina incendiária. Não são simplesmente quadros que retratam portas, são as próprias portas das cores e da fantasia abertas para nós.

E eu saí da Sala de Armas do Palazzo Vecchio sonhando em ter livros ilustrados pelo Giuliano Ghelli.

P.S. Não posso deixar de mencionar, apenas mencionar, outras coisas dessa semana fiorentina... DOIS FILMES: Tutta colpa de Giuda; e Questione di Cuore. DOIS TEATROS: um buffet seguido de show musical no Teatro Dal Sale; e Amor e Psiche no Teatro della Pergola.

sábado, 18 de abril de 2009

Minha màe tem razào -- mais uma vez

Màe, Floreza nào existe. Quer dizer, existe; mas sò no mapa do meu coraçào. :) Eu tinha pensado em criar um nome que traduzisse Florença para indicar a qualidade da cidade, assim como a qualidade de grande é grandeza e a qualidade de belo é beleza. Floreza seria a qualidade de "flor", pensando em "flor" como um adjetivo. Mas devo confessar que fiquei surpreso com sua interpretaçào e que ela me pareceu muito exata, porque tenho me sentido muito em casa em Firenze, entào é mesmo uma combinaçào de Florença com Fortaleza. :)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Quase um poema


Floreza
não é uma cidade
para se curtir
uma semana,
muito menos
para passar
um mês.
É uma saudade
para se habitar
um ano
ou
- pelo menos -
para viver
para sempre.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Enquanto eu lia Questo Amore

Terrminei de ler Questo Amore. Quando faltavam umas 20 páginas, eu era capaz de jurar que não conseguiria terminar, que enlouqueceria antes. Não enlouqueci. Mas não dá pra continuar a viagem do mesmo jeito. No mínimo, terei que incluir Lecce, a cidade em que se passa o livro, no meu roteiro, e olha que eu não estava com a mínima intenção nem de ir para o sul nem de ver o mar Adriático. Mas vou acabar passando uns dias no salto da bota que é a Itália.

Penso que aborreço aqueles que viajam comigo. Penso que já estão cansados de ficar dentro de um quarto, lendo um livro enlouquecedor, mesmo que delicioso. Mas nem tudo foi livro nessa semana. Andei por aí, com o pensamento no livro, claro, mas com a câmera apontada para outras coisas. Ainda não tenho condições de falar muito sobre essas coisas, que continuam me parecendo pouco importantes, então colocarei apenas legendas e deixarei que as imagens falem por si e por mim.

Vista do estádio da Fiorentina pelo lado de fora. Não consegui comprar ingresso para o jogo. Só estavam vendendo para residentes em Firenze, parece que devido a algum problema de segurança relacionado aos torcedores do time adversário, o Cagliari. Pena não ter visto esse jogo. Foi 2 a 1 para a Fiorentina, e teve outros ótimos momentos, depois vi os melhores lances. Mas pena mesmo foi não ter assistido a um jogo de cálcio (futebol) aqui na Itália. O próximo, contra a Roma, não estarei mais aqui. E os outros lugares que visitarei não há times de primeira divisão.

A melhor vista panorâmica de Florença é a da Piazzale Michelangelo. Isso pelo menos até eu subir os mais de 400 degraus do Duomo, o que espero fazer semana que vem. Embora Bigi, minha anfitriã, diga que o lugar mais bonito de Florença, incluindo a vista, é o Forte de Belvedere, mas eu fui lá e está fechado para reformas. De todo modo, cá estou no topo de Florença, com vista para o Arno, para o Duomo e para uma chuva linda que estava acontecendo rio abaixo.

Essa vocês já viram no vídeo, mas segue uma versão em foto. A lua cheia que fez essa semana por aqui, e que vi lá da Piazzale Michelangelo. Interessante é que a lua estava, relativamente, do mesmo tamanho das lâmpadas do poste da praça. E esse azul aí não é efeito nem filtro da câmera, não. É a cor daquele início de noite mesmo.

Na sexta-feira, houve uma pequena despedida na escola. Três colegas ficaram conosco por apenas duas semanas. Eu e os demais ficaremos ainda duas semanas. Nosso time é internacional. Além da professoressa, italiana, tem gente do Brasil, da Alemanha, da Colômbia, dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Dinamarca. E olhe que ainda faltaram, nesse dia e nessa foto, os colegas do Japão e da Austrália. Uma verdadeira sessão da ONU. Eu deixo à diversão de vocês adivinhar quem é de que país.


No sábado, fui ao Giardino de Boboli. Para quem já não agüentava mais tanta pedra, pelo menos deu pra ver uma combinação de pedra e planta.


Brincadeirinha. Era tanta planta que só se via verde. Essa é uma foto da alameda principal do jardim (mas pode chamar de parque natural ou de reserva ecológica, porque o troço é IMENSO).

No domingo, Páscoa. Me falaram de uma tradição tipicamente florentina, o Scoppio Del Carro, e eu fui conferir. Engraçado é que só agora fui olhar no dicionário o significado de “scoppio”: tudo a ver. Mas depois eu conto pra vocês, que é pra não estragar a surpresa.

O evento acontece na praça do Duomo, e eu pensei que não ia gostar, porque cheguei cedo e já tinha uma pequena multidão que não deixava ver muita coisa. Saí pra caminhar um pouco e, na volta, vi a porta lateral da Catedral do Duomo se abrindo. Entrei. Mal sabia eu que iria ver tudo de um dos melhores lugares possíveis: dentro da catedral, perto da porta. Ou seja, vendo o que acontecia dentro e um pouco do que acontecia fora. Fiz um monte de pequenos vídeos. Abaixo estão alguns que dão uma idéia da sequência do evento, o tal Scoppio Del Carro.

Nesse primeiro vídeo, feito logo depois que entrei na catedral, uma panorâmica da porta até o altar.



A festa começa com uma espécie de desfile, com pessoas vestidas à moda medieval, já que é um evento relativo às cruzadas (minha paciência com a História já acabou). No primeiro plano, os batuqueiros. Ao fundo se pode ver a “dança das bandeiras”, que são jogadas para o alto.



Ao meu lado estava um menino bem simpático e alegre, junto com seu pai. Era empolgante a alegria dele.



O carro, estranhíssimo, se aproxima da porta de entrada. Parece vindo do desenho animado A Corrida Maluca. O menino simpático enche o pai de perguntas: “Si, ma perché... ?”



Depois de uns quinze minutos de preparação, o grande momento. Uma mulher tinha me explicado, logo que cheguei, que o cabo prateado à nossa frente seria usado para a “colombina” (pombinha) voar do altar até o carro. A mulher também disse que “se a colombiana bruciasse...” era sinal de que o ano seria bom. Caso ela não “bruciasse”, seria indicação de um ano ruim. (Esse negócio de ano é porque, simplificando ao extremo, o ano antigamente começava na primavera, o que faz muito mais sentido do que começar no inverno.) Agora, alguém me explica o que quer dizer “bruciasse”? Na minha lembrança, o verbo “bruciare” queria dizer “queimar”, mas não me pareceu fazer muito sentido que a pombinha se queimasse. Vejam por vocês mesmos se a colombina bruciou (minha professoressa que não me leia isto) ou não...



Bom, me disseram que os fogos durariam 15 minutos. Uns dois minutos após o início, perguntei ao pai do menino se ainda aconteceria alguma coisa dentro da chiesa (quer dizer, igreja, juro que saiu naturalmente, pensei em italiano, viva! Viva!). O pai me olhou como se fosse minha mãe e disse: “La messa”. Esperei ele virar para o outro lado e saí de mansinho. Eu estava excitado demais para assistir a uma missa. Não consegui me aproximar do carro pela praça: muita, muita gente. Dei a volta no quarteirão e consegui filmar um pouquinho, e de longe, o final do foguetório. Gente, o carro...



... “explodiu”. É esse o significado de “scoppio”: explosão. Eu havia acabado de assistir à minha primeira Páscoa com direito a explosão de carro. Não, não me perguntem por que se explode um carro por aqui, pois eu já falei que minha paciência com a História acabou. O que posso dizer é que foi a primeira vez na vida em que não tive medo do estrondo dos fogos de artifício. Para mim foi um barulho encantadoramente ensurdecedor e inesquecível.
Acabei colocando mais que legendas. Vocês me perdoam? :-)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Um parêntese em Questo amore

Tenho visto muita coisa bonita desde domingo. Meu primeiro pôr-do-sol acima da Linha do Equador. Uma lua cheia vista do alto de Firenze. Vênus, e outras mulheres lindas, de Botticelli. O David gigantesco e quase vivo de Michelangelo. Mas nada, nada, consegue ainda me tirar do campo de gravidade de Questo Amore, um livro que arrisco dizer que foi escrito pra mim.

Se escrevo agora, é só para não esquecer de Fiederich, ou seja lá como se diz Frederico em albanês. Se escrevo agora, é só para não esquecer de sua tela ainda não terminada. Se escrevo agora, é só para não esquecer que ele, ainda bambino, roubava cores de seu irmão mais velho. Se escrevo agora, é só para não esquecer de sua saudação final de bom augúrio: "In bocca al lupo!" Porque eu já esqueci como se responde a tal saudação.



E agora volto a quello amore, que é verdadeiramente questo amore, mio amore.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Questo amore

Anteontem, ao entrar numa livraria, entrei -- inadvertidamente -- em um livro: "Questo amore", de Roberto Cotroneo. Entrei no livro como quem entra numa mulher -- fazendo-nos amor. E pelo bem de nossa intimidade é que cerro a cortina do diário -- com a manivela do silêncio -- por um gozo ou dois.

domingo, 5 de abril de 2009

Il battesimo di Lorenzo

Estou hospedado na Via di Monte Uliveto, uma rua que, adivinhem, vai dar no Monte Uliveto. Todo dia, quando chego ou quando saio, lá estão as árvores do monte, logo ao final da rua, me convidando. Neste sábado, em que acordei às 9h30 (ah, como é bom voltar a acordar sem despertador), resolvi tirar o resto da manhã para subir o monte, seguindo a rua no sentido inverso ao que tomo todo dia.

De fora, o monte sempre me pareceu pequeno, uma coisinha de nada. Mas quando se começa a caminhar... Os caminhos parecem, ao mesmo tempo, íngremes e longos. E vão estreitando, estreitando. Eu pensei que o monte era meio desabitado, ma che! É casa, é igreja, é hotel... e carro, muito carro: carro estacionado e carro indo pra lá e pra cá.

O mapa que eu tinha não era muito preciso. Na verdade, indicava que o monte tinha apenas três ou quatro caminhos. Só que não era bem assim. A cada duzentos metros, no máximo, havia uma bifurcação ou encruzilhada. Sem querer apelar para o mapa, eu olhava para um lado, olhava para o outro, sentia o que mais me agradava e deixava as pernas seguirem a intuição. De vez em quando, dava uma olhada para trás, pra apreciar a vista da cidade, que aparecia cada vez mais inteira e menor.

Às vezes, por curiosidade e coragem, tomava determinado caminho, como quando entrei numa rua minúscula que, ainda por cima, era de mão dupla. Nela, excepcionalmente, não encontrei nenhum carro indo ou voltando. Caminhantes como eu, encontrei dois ou três durante todo o percurso. E alguns moradores, ou trabalhadores, que pareciam apenas se deslocar de um lugar para outro, sem muita cara de passeio, à exceção de um pai que levava uma filha deficiente numa cadeira de rodas, e que me respondeu com um bonito sorriso quando eu disse “Buongiorno!”.

Algumas vezes, o caminho era vetado por se tratar de uma propriedade particular, embora a estrada para entrar na propriedade particular fosse, não raro, muito maior do que a estrada que eu estava percorrendo. Entre as coisas mais curiosas que vi, estava esse portão entreaberto, como que convidando para a entrada, mas com uma placa no alto: “CANI MORDACI”. As placas de alerta sobre cães por aqui costumam ser mais delicadas, tipo “Atenti al cane”, até com uma imagem simpática de um cachorro. Esse dono aí, no melhor estilo humorístico cáustico italiano, colocou logo “Cães mordazes”, ou, numa tradução menos rebuscada, “Cães mordedores”.

Pena mesmo deu quando eu estava me aproximando do que seria a vista do ponto mais elevado do monte. Já estava me preparando para tirar a melhor fotografia da manhã quando vi a placa de que estava proibida de seguir adiante qualquer pessoa que não fosse hóspede do hotel que ficava no alto do Monte Oliveto, virado para a cidade. Tirei uma foto não tão do topo, meio espremido entre árvores. Havia uma espécie de bruma sobre a cidade, que tornava as tradicionais cores pastéis das cidades italianas ainda mais fechadas.

Caminhando, caminhando, cheguei ao final – na verdade, o ínicio – da minha rua, a Via di Monte Uliveto. Quer dizer que todo aquele tempo, escolhendo entre uma encruzilhada e outra, estive me conduzindo na mesma rua? Coisa verdadeiramente estranha. Mas, dali em diante, não havia mais Via di Monte Uliveto. E realmente as encruzilhadas se multiplicaram. Algumas vezes, dava uns vinte passos numa direção, depois retornava, tentando ir mais para a esquerda do que para a direita, como me aconselhara Bigi, e mais pra baixo do que pra cima, já que já havia atingido o ponto mais alto.

Foi quando vi uma ruazinha muito estreita e, embora ela não me parecesse uma estrada principal – seja lá o que isso signifique naquele labirinto de ruas do Monte Uliveto –, resolvi entrar por ela. Duzentos ou trezentos metros depois, cheguei a mais uma igreja. Estava aberta, e resolvi entrar. Para minha surpresa, havia um padre falando e alguns fiéis. Mas não parecia uma missa comum. Sentei ao fundo, enquanto todos, umas sessenta pessoas, se concentravam nos primeiros bancos. O padre falava da importância da união do casal. Pensei que talvez se tratasse de um casamento. Mas não, logo depois vi que o padre se referia ao casal de padrinhos, então tratava-se de um batizado. O afilhado chamava-se Lorenzo. Resolvi acompanhar um pouco a cerimônia: do sermão até o batizado propriamente dito. Mesmo com um pouco de medo de ser censurado por um dos parentes e amigos, arrisquei tirar a câmera e fazer um foto para que vocês vissem o pequeno Lorenzo. O batizado, pra mim, é sempre comovente. Penso que não foi à toa que o próprio Cristo pediu para ser batizado por João, o batizador. E também acho muito bonito o acréscimo que foi feito, dos padrinhos. Fiquei ali lembrando de meus padrinhos, com quem tive pouca convivência, mas de quem sempre gostei bastante: Amadeu e Iolanda. E lembrei também de como eu era tolo no tempo em que meu caro amigo Fabiano me chamou para ser padrinho de seu segundo filho, o João, e eu recusei. Mas em algum lugar do meu coração, eu aceitei o convite, porque gosto muito, muito, do João, uma criatura veramente incrível.

Saindo da igreja, rua abaixo, o rumor dos carros começava a aumentar e eu supus que estava perto de sair do Monte Uliveto. Nos últimos metros, no muro, havia pequenos oratórios que, a princípio, pensei serem as estações da Via Crucis. Depois descobri que eram os mistérios do Rosário, no caso, os dolorosos. Fiquei imaginando minha mãe subindo aquela ladeira, parando a cada 10 metros para rezar umas ave-marias.

E logo, logo, estava eu de volta ao barulho da cidade. Tirei o mapa do bolso interno do casaco, e, para minha surpresa, eu estava exatamente no local em que eu gostaria de estar se pudesse ter escolhido uma rota. Seguindo apenas a intuição eu havia chegado justamente onde desejava se tivesse planejado. Para mim, funcionou como uma confirmação de um pensamento que tem rondado minha mente com freqüência: “Não é preciso planejar tanto, deixe as coisas seguirem seu fluxo, permita-se você também seguir seu próprio fluxo, e não se preocupe se as coisas parecerem sem sentido no momento”.

Agora era só contornar o morro, seguindo a via principal. Passei pela Porta Romana, que é realmente uma porta, só que de uns 15 metros de altura, e que a gente nem sempre percebe, porque está sempre aberta e o arco chama mais a atenção do que a porta em si, de madeira, que fica encostada. Na frente da porta, há uma praça. No meio da praça, uma estátua: uma bela mulher com uma pedra na cabeça. Perdoem-me a molecagem diante de uma obra de arte tão bonita, mas eu só conseguia pensar na música “lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria”. No meio da foto se meteu um motociclista. Motos são relativamente raras aqui, em meio ao vespeiro de vespas ou, sem pleonasmo, ao vespeiro de lambretas. Aqui em Firenze, assim como em Roma e Bologna, é sempre assim: o antigo é continuamente atravessado pelo moderno.

A poucos quarteirões de casa, vi umas orquídeas que me lembraram Alba. Não tão bonitas quanto as que ela mesma cultiva. Não tão lindas quanto ela mesma é, mas orquídeas, sempre belas. E me contento em estar chegando nessa casa que será a minha ainda por algumas semanas, enquanto não chego na minha casa mesmo, o que só acontecerá no final do mês que vem.

Almocei umas verduras que comprei no Seu Lunga, uma verdadeira salada que tinha de tudo, até feijão. Depois tirei meu cochilo. Ainda pensei em vagar pela cidade mais um pouco, mas resolvi escrever o diário e guardar um pouco as energias para a noite, já que estava com vontade de ir ao teatro, ver uma peça chamada “MOLLY B. Tutti i miei sì” que, se eu me atravesse a traduzir seria algo como “Molly B. Todos os meus sis”, mas não me atrevo.

O teatro era aqui próximo, na Via Pisana, um pouco abaixo do supermercado. Quando deu umas 19h30, fui lá comprar meu ingresso. Na volta, passei no Seu Lunga pra comprar água. Fiquei impressionado. No centro de Firenze, ou de Roma, ou de Bologna, você compra uma garrafinha de meio litro por, no mínimo, 1 Euro. Num restaurante, a garrafinha pode custar até 2 euros. Eu já estava satisfeito por comprar, na esquina de casa, uma garrafa, de litro e meio, por 1,30 Euro. No Seu Lunga, tinha a esperança de comprar a mesma garrafa por 1 Euro. No dispositor, não consegui localizar o preço. Peguei duas garrafas. Qual não foi minha surpresa ao chegar no caixa... Primeiro que o homem que estava à minha frente, e que carregava não sei quantas cervejas, em lata e em garrafa, tirou do bolso uma nota de 20 Euros. Justo, pensei. Só que a mulher lhe deu um troco de mais de 15 Euros, e eu não acreditei. Gente, como é fácil se embriagar aqui. Por menos de 5 Euros, aquele cara estava correndo o risco de coma alcoólico. Chegou a minha vez. Eu sabia que não ia dar muito, e estava na dúvida se, mesmo assim, usaria cartão de crédito. Então a mulher anunciou minha conta: 2,75 Euros. Isso porque eu tinha comprado um pacote com seis barrinhas de cereal. Paguei e dei uma olhada no recibo. Sabem quanto me custou cada garrafa de litro e meio de água? Catorze centavos de Euro. Inacreditável, gente! Deveriam vender Gnocchi al Quattro Formaggi aqui no Seu Lunga também.

Deixei as compras em casa e retornei ao teatro. Só nos deixaram entrar na sala às 21h. Um teatro simples, mas bonito, com paredes de tijolo aparente. Os atores, um casal, já estavam no palco, sobre uma cama, enrolados, invertidos, com os pés próximos à cabeça um do outro, a mulher virada para a platéia, o homem apenas mostrando a parte de trás da cabeça para a gente. A cama estava um pouco pensa, transversal e inclinada – parece que a insólita geometria italiana não se aplica apenas às ruas. O encosto da cama, a cabeceira, ou seja lá que nome tenha, era espetacular, enorme, e se projetava, também pensa, transversal e inclinada, da cama para o teto por uns dois metros e meio. Cravados na madeira do encosto, como se afundados num cimento que era fresco e que se solidificou, uma série de objetos dos mais variados tipos: cabide, cadeira, carrinho de bebê... O cenário era só isso, e, acreditem, era mais do que o suficiente. Se a peça fosse só aquilo, assistir durante uma hora àquele casal dormindo, juro que daria meus 12 Euros por muito bem empregados. Aquela visão me inspirava a tal ponto que comecei a escrever mentalmente. Cheguei a fechar os olhos, e senti o arrepio criativo percorrer meu corpo. Eu havia entrado numa nuvem de possibilidades de histórias. A mais visível era a de um menino que, dormindo, nos contava a sua história, interligando os objetos visíveis em sua cama.

Estava eu nesse delírio pessoal, nessa experiência quase mística, quando, não sei por que infelicidade, resolveram dar início ao espetáculo propriamente dito. As luzes da platéia se apagaram e a iluminação se concentrou sobre a cama. A mulher começou a sussurrar, ainda em sonhos. De tanto sussurrar, acordou a si mesma, e continuou a falar pelo restante do espetáculo enquanto o outro ator ficou lá, praticamente imóvel, representando que dormia, ou dormindo de verdade, quem há de saber. A peça era um monólogo, eu devia ter desconfiado só de ter visto o anúncio. A atriz saiu da cama uma única vez, para representar que estava fazendo xixi, ou cocô, num penico, a apenas um metro da cama, e pouco depois retornou. Não entendi a maioria do que ela disse, ri uma única vez, contra os seis ou sete risos da platéia – a mulher à minha frente não conta, ela riu o espetáculo inteiro. De todo modo, compreendi o sentido geral da coisa. A mulher, em seu falar sozinho, de madrugada, reclamava do homem que estava dormindo, e um pouco de sua filha, relembrava antigos amores, idealizava futuros. Eu fiquei me perguntando por que não tinha ficado tudo como no início: o silêncio, a beleza simples e desorganizada do cenário, os atores dormindo. E, como eu não sabia da duração do espetáculo, tive medo de que durasse duas ou três horas.

Para minha sorte, no total, descontado o atraso inicial, deve ter durado uns quarenta e cinco minutos. A luz apagou, enfim. E quando acendeu, já era a luz da beira do palco, e não a luz da cama. A atriz veio receber seus aplausos. Eu também aplaudi, afinal sou uma pessoa educada. Depois ela foi para trás da cabeceira da cama e, na volta, trouxe o ator, que ainda estava com cara de sono. Brincadeirinha, ele parecia muito tímido, assustado até. Algumas pessoas riram quando eles apareceram de mãos dadas. Eu até pensei em rir também, pela segunda vez na noite, já que era mesmo curioso, quase ofensivo, um ator não fazer nada durante toda a peça e, no final, ainda vir receber aplausos. Mas me ocorreu outro pensamento, um pensamento que me fez querer ficar de pé e bater palmas com força até sangrar as mãos, e gritar não “Brava!” – porque descobri que o que para nós é exclamação (“Bravo!”), aqui é adjetivo, concordando em gênero com a pessoa a que se refere. Não, eu não queria dizer que a atriz era brava, quer dizer, muito competente naquilo que faz. Também não me veio a vontade de gritar “Bravi”, reconhecendo, no plural, o valor dos dois atores, juntos. Não, nada disso. Veio-me, pura e simplesmente, o desejo enorme de gritar “Bravo! Bravo!”, tanto para o ator quanto para o seu personagem. É preciso ser muito bravo para conseguir dormir, ou pelo menos ficar imóvel, enquanto uma mulher fala e reclama e delira durante quase uma hora. Sim, “Bravissimo! Bravissimo!”, pensei em gritar com toda a minha garganta. Que desempenho espetacular! Impressionante como aquele ator havia conseguido manter, sozinho, o clima inicial! E como eu havia perdido tempo tentando entender o que a atriz dizia, cansando meu juízo. Deveria ter me concentrado na imobilidade do ator e do cenário. A fala da mulher deveria ter sido, para mim, um murmúrio de fundo, uma música ambiente. Sim, era sobre isto o espetáculo, e é sobre isto a vida. Permanecer tranquilo enquanto o mundo gira. Dormir o sono dos justos enquanto a multidão agitada se ergue em reclames de injustiça.

Depois foi só caminhar até o número 13 da Via di Monte Uliveto, ler um pouco mais de Pinocchio – que está, graças a Deus, quase a ponto de tomar juízo – e adormecer sob as cobertas, mesmo a cama sendo reta e sem encosto de cabeceira.

sábado, 4 de abril de 2009

Uma metáfora que aconteceu

Acontece raramente, mas é um privilégio ver uma metáfora acontecer. Porque primeiro vem o acontecimento, que o poeta transforma em metáfora. Para o poeta, a metáfora já aconteceu. Para aqueles que escutam a metáfora, ela normalmente é o relato poético de algo que eles jamais verão. Por isso é um privilégio ver algo que já aconteceu acontecer novamente, porque nos permite ser poeta de um verso que já está escrito. E hoje uma metáfora me aconteceu...

Chegaram ao mesmo tempo, para mim em Florença, o Sol e um e-mail de Luiza, minha querida amestra, isso mesmo, amestra, amiga que é também mestra. E não só minha, mas de tanta gente boa, feito Manu, que um dia compôs um poema canção para Luiza, dando palavra e som a um sentimento meu, de Fabiano e de todos Os interno do pátiO:

O nosso amor, Luiza,
tem que ser vivido
de forma musical.
Nosso tesouro é vida,
são nossas amizades
etc. e tal.
Vi o sol nascer,
parecia com você,
tinha o seu calor,
brilhava forte feito amor.

Então a metáfora de Manu, de que a Luiza é o Sol, aconteceu para mim nesse dia 3 de abril, uns dias depois do aniversário de Luiza, que eu esqueci, mas que prolongo aqui, nessa revivência de metáfora.

Eu nem sabia que Luiza estava acompanhando meu diário de viagem. E o que a tirou de seu silêncio foi a referência que fiz à Primavera, de Botticelli. Vejam que basta isso para que o quadro de Botticelli assuma uma grande importância. Não fosse pelo traço, pela composição, pelas cores, apenas por isso já valeria a pena Botticelli tê-lo pintava. Apenas por provocar em mim um comentário, e por esse comentário ser motivo suficiente para Luiza me escrever. Não é só a Chuva (de Fabiano), mas também a Primavera (de Botticelli), que faz a gente se encontrar.

E fez também com que se encontrassem um pombo e uma pomba, que pude ver da janela da sala de estudos do Istituto Italiano, que tem vista para o Duomo. Vejam que um pouco de sol, marcando verdadeiramente o início da primavera, faz com que se realize também a metáfora, já quase um clichê, do “casal de pombinhos”.



É... com a primavera vem o sol e, com ele, as saias sem meia-calça por baixo, os decotes, os ombros à mostra. Até mini-saia eu vi ontem em Florença (possivelmente de uma finlandesa ou de uma norueguesa). O sol faz derreter os gorros, as luvas, os casacos. As pessoas, ao primeiro sol de primavera, ficam à flor de sua própria pele.

Ontem foi um dia de filmes. Italianos, claro, pois tenho que praticar a compreensão da língua. Às sexta-feiras, no Istituto, são exibidos clássicos do cinema italiano. Ontem fiquei para assistir a “I Girasoli”, do Vittorio di Sica. Um filme antigo, até com a imagem meio gasta, ainda mais sendo projetada por um datashow numa parede que um dia já foi branca. Mas foi só o filme começar de verdade, foi só ele realizar aquilo que todo bom filme realiza, foi só ele me convencer de que não se tratava de filme, mas da própria realidade, bastou isso, para que os girassóis fossem girando na minha cabeça e produzindo maravilhas. Que filme lindo! Lindo como Sofia Loren e lindo como, possivelmente, Marcelo Mastroianni. Que história tocante de uma amor pequeno que ficou grande, de um amor grande que ficou perdido, de um amor perdido que foi reencontrado, de um amor reencontrado que se tornou desencontrado, de um amor desencontrado que se viu partido, de um partido que se junta no coração de qualquer pessoa que já girou em seu peito um amor de sol. Saí do Istituto assobiando a música tema do filme, como se quisesse soprar no ouvido das pessoas que passavam por mim a semente de girassóis de amor.



Quase tudo em mim se adaptou – para melhor ou para pior – ao fuso horário na Itália, menos meu cochilo. Quase todo dia, tiro um cochilo às 18h30, 13h30 aí no Brasil. Depois do cochilo de ontem, mais um filme, mais uma vez no cinema Fulgor, ao qual eu poderia ir a pé. Fui sem nenhum filme em mente, pensando apenas em assistir a um filme italiano. Cheguei à bilheteria 10 minutos antes de começar “I Mostri Oggi”, que eu traduzi corretamente como “Os Monstros Hoje”, embora não tenha entendido direito a que se referia. Bastaram poucos minutos para eu entender: humor ácido, irônico e sarcástico, no melhor estilo italiano de “Parente, Serpente”. O filme trazia pequenas histórias, independentes umas das outras, em que se mostrava o lado menos bom, para usar um eufemismo, do gênero humano. De um torcedor do Roma que seduzia uma paraplégica para roubar-lhe a cadeira de rodas e garantir, como deficiente, um melhor lugar no estádio de futebol até uma psicóloga que induz o marido de sua amiga ao suicídio. Em outros tempos, eu teria rido até me acabar. Dessa vez, ri menos. Ultimamente, esse tipo de humor já não me faz rir tanto.



Voltei caminhando, ouvindo o sussurro do Arno. Em casa, não tive coragem de enfrentar a água, mesmo quente. Gato congelado tem medo de água quente. Um dia sem banho, mas um dia feliz: o sol, a primavera (enfim!), Luiza, girassóis... antes de dormir, a repetição do que mais tenho feito durante essa viagem: “Gracias a la vida, que me ha dado tanto...”

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Google X Bigi

Ontem resolvi ir ao teatro. Tudo certo, espetáculo escolhido, trajeto definido, bilhetes do teatro e do ônibus comprados.

Quando fui me despedir de Bigi, dizendo que pegaria o ônibus 6 e depois o 7 (conforme havia visto no Google Maps), ela disse que o 7 não me levaria ao teatro. Abrimos o mapa de Firenze, confabulamos um pouco, ela ligou para um serviço de informações e eu, em meu aperreio, temia perder a hora do teatro. Ao final, Bigi falou que eu deveria pegar o 20 ou o 14, após o 6. Peguei o 6 e, dentro do ônibus, ainda não havia me decidido se obedeceria à Bigi ou ao Google. Se eu desobedecesse a Bigi, seria difícil encará-la no dia seguinte, quando certamente perguntaria como foi meu trajeto. Se desobedecesse ao Google, perderia a confiança nas pesquisas de futuros trajetos. Durante aqueles 15 minutos até a Piazza San Marco, me ocorreu que o inferno não é simplesmente a falta de comunicação, como diz Pepeta, é também a dúvida, a incapacidade de escolher entre uma alternativa e outra. O que, no fundo, talvez seja só uma incapacidade de entender a comunicação da Vida, que nos indica qual a melhor escolha. Quando desci na Piazza San Marco, já havia decidido. O 20 ou o 14, conforme Bigi? Não. Então o 7 do Google? Também não. Resolvi pegar um táxi. É, há que se ter esperteza para escapar do inferno.

Outra esperteza, para não correr o risco de não entender o que se falava no teatro, foi escolher um espetáculo de mímica (Splash) de um grupo espanhol. Comprei ingresso na segunda fila, mesmo correndo o risco de acabar participando ativamente do espetáculo caso ele fosse interativo. Ao meu lado sentaram uma italiana e seu filho de uns 7 anos. Aliás, havia várias outras crianças no teatro, mesmo o "texto" da "peça" não sendo muito adequado em alguns momentos. A italiana era muito simpática, e, quando soube que eu era brasileiro, até cantou um pouquinho de "Mas que nada" e de "Isaura". Gente, que é isso? Tem muito brasileiro que nem conhece "Isaura". E a mulher era impressionante, porque cantou junto várias músicas (de várias nacionalidades) da trilha sonora do espetáculo.



O espetáculo terminou com uma divertidíssima guerra de bolas de meia entre os atores e a platéia. E o filhinho da italiana participou com a máxima disposição, entrando inclusive em "luta" corporal com um dos atores. Brincou e brigou tanto o menino que, quando sua mãe o procurou ao final do espetáculo, não o encontrou mais. Ela ficou lá na porta da sala, procurando, esperando... Eu, ao sair do teatro, vi o menino e retornei para avisá-la. O reencontro foi bonito ("Felippo! Felippo!) e me fez imaginar como foi quando me perdi de meus pais ainda criança. É um episódio que minha mãe conta, mas do qual não tenho uma lembrança direta.

Findo o espetáculo, eu tinha um problema: como voltar. Sim, porque Bigi parecia estar mais certa do que o Google, e eu não podia confiar no trajeto que havia planejado online. Além do mais, o teatro ficava fora da zona exposta no mapa da cidade. Eu havia literalmente passado dos limites. Pensei até em perguntar para a italiana como poderia pegar um táxi ou um ônibus, mas temi que ela achasse aquilo algum tipo de abuso ou que se oferecesse para me dar uma carona. Não sei por que, mas aquele pensamento me deu um certo medo, e preferi caminhar no sentido oposto ao que o táxi tinha usado para me trazer. Uns 600 ou 700 metros depois, cheguei a uma praça, Piazza Leopoldo. Havia um rapaz na parada e ele falou que um ônibus passaria dali a uns 20 minutos com destino à estação, coisa que pude comprovar no poste da parada. Aliás, essa é uma verdadeira maravilha italiana: em cada parada de ônibus existe um poste onde estão afixadas as rotas e os horários de todos os ônibus que param ali.

Quando cheguei à estação, o motorista falou que eu teria que esperar 40 minutos, até a meia-noite, por um ônibus que me levaria para perto de casa. Como não gosto muito de esperar, e essa já seria a segunda vez na noite, resolvi caminhar o restante do percurso: aproximadamente, a mesma distância que faço da escola pra casa todo dia.

O frio era suportável, sinal de que a primavera está mesmo chegando, e o céu estava parcialmente claro, me permitindo a companhia da minha lua favorita, a lua-meia, que aqui, assim como em Brasília, é inclinada, e não a lua-meia cama, horizontal, que acho genial e que se pode ver em Fortaleza ou Teresina.

Só quando eu já estava para dobrar a esquina final foi que a Lua se despediu, cobrindo-se ela mesma com um grosso lençol de nuvens, mas translúcido o bastante para que se visse o brilho dessa mãe que vela por nós toda noite.

E eu também fui dormir feliz: pelo teatro, pela mãe e pelo filho, pela caminhada, pela Lua... por ser o mundo esse lugar impressionante e espetacular que se desdobra aos pés e aos olhos de um viajante.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Marmúsica e riofilme

Hoje o Sol tentou ensaiar a primavera. Mas um frio dos invernos invadia sempre o palco, atrapalhando o ensaio.

Caminhando ao longo do Arno, cujo volume tem aumentado com a chuva dos últimos dias, ali pela altura da pescara, onde há uma mudança de nível, a queda d'água faz um som que lembra o mar e faz esquecer a noite mal dormida e o iminente atraso para a aula.

Acordei às 4 da manhã para dar efeito ao laxante que eu tinha tomado na noite anterior. O remédio parecia atravessar meu corpo em ondas, e eu pensei que iria desmaiar. Consegui dormir um pouquinho antes do despertador tocar às 7h30. Não adiantou nada ter colocado o despertador para mais cedo pois o sono me fez ficar mais tempo ainda na cama, pensando se deveria mesmo ir à aula. Mas pra quem está lendo Pinocchio, e tem acompanhado os trágicos acontecimentos que se sucedem sempre que o boneco resolve faltar à escola, achei melhor não arriscar. Mas eu estava falando do Arno, que me lembrava o mar...

Fechei os olhos por um momento, na esperança de ser teletransportado até a Praia do Futuro, mas a concentração na audição só me fez perceber que há uma grande diferença entre o som do rio e o do mar. O som do rio é sempre contínuo. O do mar reflui. O rio é como filme que passa e não volta. No máximo um filme que, se gostamos muito, vemos quatro ou cinco vezes. O mar é feito música que ouvimos vezes seguidas, e que parece mesmo um círculo perfeito em que o final emenda no início. Há beleza nos dois sons, mas o mar se assemelha mais à minha natureza repetitiva.

Mesmo com tais audições e reflexões, cheguei pouco mais de um minuto atrasado, e não perdi nada da aula. Quando acabamos um exercício, Maíra, uma brasileira, cochichou para mim, apontando para as minhas costas: "Eduardo, guarda! La primavera di Botticelli". Virei-me e olhei tão demoradamente quanto pude. Porque aqui, até agora, só se pode ver a primavera nos quadros. E, mesmo assim, a primavera de Botticelli ainda é meio sombria. Talvez o original seja melhor: terei a oportunidade de vê-lo na Galeria Uffizi.

Pra semana que vem, a meteorologia promete que a temperatura vai passar dos 20º e que o Sol vai fazer una anteprima della primavera. Só me resta esperar -- de casaco, cachecol e luvas.