E logo, logo, estava eu de volta ao barulho da cidade. Tirei o mapa do bolso interno do casaco, e, para minha surpresa, eu estava exatamente no local em que eu gostaria de estar se pudesse ter escolhido uma rota. Seguindo apenas a intuição eu havia chegado justamente onde desejava se tivesse planejado. Para mim, funcionou como uma confirmação de um pensamento que tem rondado minha mente com freqüência: “Não é preciso planejar tanto, deixe as coisas seguirem seu fluxo, permita-se você também seguir seu próprio fluxo, e não se preocupe se as coisas parecerem sem sentido no momento”.
Almocei umas verduras que comprei no Seu Lunga, uma verdadeira salada que tinha de tudo, até feijão. Depois tirei meu cochilo. Ainda pensei em vagar pela cidade mais um pouco, mas resolvi escrever o diário e guardar um pouco as energias para a noite, já que estava com vontade de ir ao teatro, ver uma peça chamada “MOLLY B. Tutti i miei sì” que, se eu me atravesse a traduzir seria algo como “Molly B. Todos os meus sis”, mas não me atrevo.
O teatro era aqui próximo, na Via Pisana, um pouco abaixo do supermercado. Quando deu umas 19h30, fui lá comprar meu ingresso. Na volta, passei no Seu Lunga pra comprar água. Fiquei impressionado. No centro de Firenze, ou de Roma, ou de Bologna, você compra uma garrafinha de meio litro por, no mínimo, 1 Euro. Num restaurante, a garrafinha pode custar até 2 euros. Eu já estava satisfeito por comprar, na esquina de casa, uma garrafa, de litro e meio, por 1,30 Euro. No Seu Lunga, tinha a esperança de comprar a mesma garrafa por 1 Euro. No dispositor, não consegui localizar o preço. Peguei duas garrafas. Qual não foi minha surpresa ao chegar no caixa... Primeiro que o homem que estava à minha frente, e que carregava não sei quantas cervejas, em lata e em garrafa, tirou do bolso uma nota de 20 Euros. Justo, pensei. Só que a mulher lhe deu um troco de mais de 15 Euros, e eu não acreditei. Gente, como é fácil se embriagar aqui. Por menos de 5 Euros, aquele cara estava correndo o risco de coma alcoólico. Chegou a minha vez. Eu sabia que não ia dar muito, e estava na dúvida se, mesmo assim, usaria cartão de crédito. Então a mulher anunciou minha conta: 2,75 Euros. Isso porque eu tinha comprado um pacote com seis barrinhas de cereal. Paguei e dei uma olhada no recibo. Sabem quanto me custou cada garrafa de litro e meio de água? Catorze centavos de Euro. Inacreditável, gente! Deveriam vender Gnocchi al Quattro Formaggi aqui no Seu Lunga também.
Deixei as compras em casa e retornei ao teatro. Só nos deixaram entrar na sala às 21h. Um teatro simples, mas bonito, com paredes de tijolo aparente. Os atores, um casal, já estavam no palco, sobre uma cama, enrolados, invertidos, com os pés próximos à cabeça um do outro, a mulher virada para a platéia, o homem apenas mostrando a parte de trás da cabeça para a gente. A cama estava um pouco pensa, transversal e inclinada – parece que a insólita geometria italiana não se aplica apenas às ruas. O encosto da cama, a cabeceira, ou seja lá que nome tenha, era espetacular, enorme, e se projetava, também pensa, transversal e inclinada, da cama para o teto por uns dois metros e meio. Cravados na madeira do encosto, como se afundados num cimento que era fresco e que se solidificou, uma série de objetos dos mais variados tipos: cabide, cadeira, carrinho de bebê... O cenário era só isso, e, acreditem, era mais do que o suficiente. Se a peça fosse só aquilo, assistir durante uma hora àquele casal dormindo, juro que daria meus 12 Euros por muito bem empregados. Aquela visão me inspirava a tal ponto que comecei a escrever mentalmente. Cheguei a fechar os olhos, e senti o arrepio criativo percorrer meu corpo. Eu havia entrado numa nuvem de possibilidades de histórias. A mais visível era a de um menino que, dormindo, nos contava a sua história, interligando os objetos visíveis em sua cama.
Estava eu nesse delírio pessoal, nessa experiência quase mística, quando, não sei por que infelicidade, resolveram dar início ao espetáculo propriamente dito. As luzes da platéia se apagaram e a iluminação se concentrou sobre a cama. A mulher começou a sussurrar, ainda em sonhos. De tanto sussurrar, acordou a si mesma, e continuou a falar pelo restante do espetáculo enquanto o outro ator ficou lá, praticamente imóvel, representando que dormia, ou dormindo de verdade, quem há de saber. A peça era um monólogo, eu devia ter desconfiado só de ter visto o anúncio. A atriz saiu da cama uma única vez, para representar que estava fazendo xixi, ou cocô, num penico, a apenas um metro da cama, e pouco depois retornou. Não entendi a maioria do que ela disse, ri uma única vez, contra os seis ou sete risos da platéia – a mulher à minha frente não conta, ela riu o espetáculo inteiro. De todo modo, compreendi o sentido geral da coisa. A mulher, em seu falar sozinho, de madrugada, reclamava do homem que estava dormindo, e um pouco de sua filha, relembrava antigos amores, idealizava futuros. Eu fiquei me perguntando por que não tinha ficado tudo como no início: o silêncio, a beleza simples e desorganizada do cenário, os atores dormindo. E, como eu não sabia da duração do espetáculo, tive medo de que durasse duas ou três horas.
Para minha sorte, no total, descontado o atraso inicial, deve ter durado uns quarenta e cinco minutos. A luz apagou, enfim. E quando acendeu, já era a luz da beira do palco, e não a luz da cama. A atriz veio receber seus aplausos. Eu também aplaudi, afinal sou uma pessoa educada. Depois ela foi para trás da cabeceira da cama e, na volta, trouxe o ator, que ainda estava com cara de sono. Brincadeirinha, ele parecia muito tímido, assustado até. Algumas pessoas riram quando eles apareceram de mãos dadas. Eu até pensei em rir também, pela segunda vez na noite, já que era mesmo curioso, quase ofensivo, um ator não fazer nada durante toda a peça e, no final, ainda vir receber aplausos. Mas me ocorreu outro pensamento, um pensamento que me fez querer ficar de pé e bater palmas com força até sangrar as mãos, e gritar não “Brava!” – porque descobri que o que para nós é exclamação (“Bravo!”), aqui é adjetivo, concordando em gênero com a pessoa a que se refere. Não, eu não queria dizer que a atriz era brava, quer dizer, muito competente naquilo que faz. Também não me veio a vontade de gritar “Bravi”, reconhecendo, no plural, o valor dos dois atores, juntos. Não, nada disso. Veio-me, pura e simplesmente, o desejo enorme de gritar “Bravo! Bravo!”, tanto para o ator quanto para o seu personagem. É preciso ser muito bravo para conseguir dormir, ou pelo menos ficar imóvel, enquanto uma mulher fala e reclama e delira durante quase uma hora. Sim, “Bravissimo! Bravissimo!”, pensei em gritar com toda a minha garganta. Que desempenho espetacular! Impressionante como aquele ator havia conseguido manter, sozinho, o clima inicial! E como eu havia perdido tempo tentando entender o que a atriz dizia, cansando meu juízo. Deveria ter me concentrado na imobilidade do ator e do cenário. A fala da mulher deveria ter sido, para mim, um murmúrio de fundo, uma música ambiente. Sim, era sobre isto o espetáculo, e é sobre isto a vida. Permanecer tranquilo enquanto o mundo gira. Dormir o sono dos justos enquanto a multidão agitada se ergue em reclames de injustiça.Depois foi só caminhar até o número 13 da Via di Monte Uliveto, ler um pouco mais de Pinocchio – que está, graças a Deus, quase a ponto de tomar juízo – e adormecer sob as cobertas, mesmo a cama sendo reta e sem encosto de cabeceira.

Junoca, por um momento pensei que voce fosse se arrepender de ter ido ao teatro. Mas, como ateh agora nao tenho visto voce se arrepender de nada na nossa viagem, sosseguei e fui ateh o final. Melhor pra mim. Beijo
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