domingo, 5 de abril de 2009

Il battesimo di Lorenzo

Estou hospedado na Via di Monte Uliveto, uma rua que, adivinhem, vai dar no Monte Uliveto. Todo dia, quando chego ou quando saio, lá estão as árvores do monte, logo ao final da rua, me convidando. Neste sábado, em que acordei às 9h30 (ah, como é bom voltar a acordar sem despertador), resolvi tirar o resto da manhã para subir o monte, seguindo a rua no sentido inverso ao que tomo todo dia.

De fora, o monte sempre me pareceu pequeno, uma coisinha de nada. Mas quando se começa a caminhar... Os caminhos parecem, ao mesmo tempo, íngremes e longos. E vão estreitando, estreitando. Eu pensei que o monte era meio desabitado, ma che! É casa, é igreja, é hotel... e carro, muito carro: carro estacionado e carro indo pra lá e pra cá.

O mapa que eu tinha não era muito preciso. Na verdade, indicava que o monte tinha apenas três ou quatro caminhos. Só que não era bem assim. A cada duzentos metros, no máximo, havia uma bifurcação ou encruzilhada. Sem querer apelar para o mapa, eu olhava para um lado, olhava para o outro, sentia o que mais me agradava e deixava as pernas seguirem a intuição. De vez em quando, dava uma olhada para trás, pra apreciar a vista da cidade, que aparecia cada vez mais inteira e menor.

Às vezes, por curiosidade e coragem, tomava determinado caminho, como quando entrei numa rua minúscula que, ainda por cima, era de mão dupla. Nela, excepcionalmente, não encontrei nenhum carro indo ou voltando. Caminhantes como eu, encontrei dois ou três durante todo o percurso. E alguns moradores, ou trabalhadores, que pareciam apenas se deslocar de um lugar para outro, sem muita cara de passeio, à exceção de um pai que levava uma filha deficiente numa cadeira de rodas, e que me respondeu com um bonito sorriso quando eu disse “Buongiorno!”.

Algumas vezes, o caminho era vetado por se tratar de uma propriedade particular, embora a estrada para entrar na propriedade particular fosse, não raro, muito maior do que a estrada que eu estava percorrendo. Entre as coisas mais curiosas que vi, estava esse portão entreaberto, como que convidando para a entrada, mas com uma placa no alto: “CANI MORDACI”. As placas de alerta sobre cães por aqui costumam ser mais delicadas, tipo “Atenti al cane”, até com uma imagem simpática de um cachorro. Esse dono aí, no melhor estilo humorístico cáustico italiano, colocou logo “Cães mordazes”, ou, numa tradução menos rebuscada, “Cães mordedores”.

Pena mesmo deu quando eu estava me aproximando do que seria a vista do ponto mais elevado do monte. Já estava me preparando para tirar a melhor fotografia da manhã quando vi a placa de que estava proibida de seguir adiante qualquer pessoa que não fosse hóspede do hotel que ficava no alto do Monte Oliveto, virado para a cidade. Tirei uma foto não tão do topo, meio espremido entre árvores. Havia uma espécie de bruma sobre a cidade, que tornava as tradicionais cores pastéis das cidades italianas ainda mais fechadas.

Caminhando, caminhando, cheguei ao final – na verdade, o ínicio – da minha rua, a Via di Monte Uliveto. Quer dizer que todo aquele tempo, escolhendo entre uma encruzilhada e outra, estive me conduzindo na mesma rua? Coisa verdadeiramente estranha. Mas, dali em diante, não havia mais Via di Monte Uliveto. E realmente as encruzilhadas se multiplicaram. Algumas vezes, dava uns vinte passos numa direção, depois retornava, tentando ir mais para a esquerda do que para a direita, como me aconselhara Bigi, e mais pra baixo do que pra cima, já que já havia atingido o ponto mais alto.

Foi quando vi uma ruazinha muito estreita e, embora ela não me parecesse uma estrada principal – seja lá o que isso signifique naquele labirinto de ruas do Monte Uliveto –, resolvi entrar por ela. Duzentos ou trezentos metros depois, cheguei a mais uma igreja. Estava aberta, e resolvi entrar. Para minha surpresa, havia um padre falando e alguns fiéis. Mas não parecia uma missa comum. Sentei ao fundo, enquanto todos, umas sessenta pessoas, se concentravam nos primeiros bancos. O padre falava da importância da união do casal. Pensei que talvez se tratasse de um casamento. Mas não, logo depois vi que o padre se referia ao casal de padrinhos, então tratava-se de um batizado. O afilhado chamava-se Lorenzo. Resolvi acompanhar um pouco a cerimônia: do sermão até o batizado propriamente dito. Mesmo com um pouco de medo de ser censurado por um dos parentes e amigos, arrisquei tirar a câmera e fazer um foto para que vocês vissem o pequeno Lorenzo. O batizado, pra mim, é sempre comovente. Penso que não foi à toa que o próprio Cristo pediu para ser batizado por João, o batizador. E também acho muito bonito o acréscimo que foi feito, dos padrinhos. Fiquei ali lembrando de meus padrinhos, com quem tive pouca convivência, mas de quem sempre gostei bastante: Amadeu e Iolanda. E lembrei também de como eu era tolo no tempo em que meu caro amigo Fabiano me chamou para ser padrinho de seu segundo filho, o João, e eu recusei. Mas em algum lugar do meu coração, eu aceitei o convite, porque gosto muito, muito, do João, uma criatura veramente incrível.

Saindo da igreja, rua abaixo, o rumor dos carros começava a aumentar e eu supus que estava perto de sair do Monte Uliveto. Nos últimos metros, no muro, havia pequenos oratórios que, a princípio, pensei serem as estações da Via Crucis. Depois descobri que eram os mistérios do Rosário, no caso, os dolorosos. Fiquei imaginando minha mãe subindo aquela ladeira, parando a cada 10 metros para rezar umas ave-marias.

E logo, logo, estava eu de volta ao barulho da cidade. Tirei o mapa do bolso interno do casaco, e, para minha surpresa, eu estava exatamente no local em que eu gostaria de estar se pudesse ter escolhido uma rota. Seguindo apenas a intuição eu havia chegado justamente onde desejava se tivesse planejado. Para mim, funcionou como uma confirmação de um pensamento que tem rondado minha mente com freqüência: “Não é preciso planejar tanto, deixe as coisas seguirem seu fluxo, permita-se você também seguir seu próprio fluxo, e não se preocupe se as coisas parecerem sem sentido no momento”.

Agora era só contornar o morro, seguindo a via principal. Passei pela Porta Romana, que é realmente uma porta, só que de uns 15 metros de altura, e que a gente nem sempre percebe, porque está sempre aberta e o arco chama mais a atenção do que a porta em si, de madeira, que fica encostada. Na frente da porta, há uma praça. No meio da praça, uma estátua: uma bela mulher com uma pedra na cabeça. Perdoem-me a molecagem diante de uma obra de arte tão bonita, mas eu só conseguia pensar na música “lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria”. No meio da foto se meteu um motociclista. Motos são relativamente raras aqui, em meio ao vespeiro de vespas ou, sem pleonasmo, ao vespeiro de lambretas. Aqui em Firenze, assim como em Roma e Bologna, é sempre assim: o antigo é continuamente atravessado pelo moderno.

A poucos quarteirões de casa, vi umas orquídeas que me lembraram Alba. Não tão bonitas quanto as que ela mesma cultiva. Não tão lindas quanto ela mesma é, mas orquídeas, sempre belas. E me contento em estar chegando nessa casa que será a minha ainda por algumas semanas, enquanto não chego na minha casa mesmo, o que só acontecerá no final do mês que vem.

Almocei umas verduras que comprei no Seu Lunga, uma verdadeira salada que tinha de tudo, até feijão. Depois tirei meu cochilo. Ainda pensei em vagar pela cidade mais um pouco, mas resolvi escrever o diário e guardar um pouco as energias para a noite, já que estava com vontade de ir ao teatro, ver uma peça chamada “MOLLY B. Tutti i miei sì” que, se eu me atravesse a traduzir seria algo como “Molly B. Todos os meus sis”, mas não me atrevo.

O teatro era aqui próximo, na Via Pisana, um pouco abaixo do supermercado. Quando deu umas 19h30, fui lá comprar meu ingresso. Na volta, passei no Seu Lunga pra comprar água. Fiquei impressionado. No centro de Firenze, ou de Roma, ou de Bologna, você compra uma garrafinha de meio litro por, no mínimo, 1 Euro. Num restaurante, a garrafinha pode custar até 2 euros. Eu já estava satisfeito por comprar, na esquina de casa, uma garrafa, de litro e meio, por 1,30 Euro. No Seu Lunga, tinha a esperança de comprar a mesma garrafa por 1 Euro. No dispositor, não consegui localizar o preço. Peguei duas garrafas. Qual não foi minha surpresa ao chegar no caixa... Primeiro que o homem que estava à minha frente, e que carregava não sei quantas cervejas, em lata e em garrafa, tirou do bolso uma nota de 20 Euros. Justo, pensei. Só que a mulher lhe deu um troco de mais de 15 Euros, e eu não acreditei. Gente, como é fácil se embriagar aqui. Por menos de 5 Euros, aquele cara estava correndo o risco de coma alcoólico. Chegou a minha vez. Eu sabia que não ia dar muito, e estava na dúvida se, mesmo assim, usaria cartão de crédito. Então a mulher anunciou minha conta: 2,75 Euros. Isso porque eu tinha comprado um pacote com seis barrinhas de cereal. Paguei e dei uma olhada no recibo. Sabem quanto me custou cada garrafa de litro e meio de água? Catorze centavos de Euro. Inacreditável, gente! Deveriam vender Gnocchi al Quattro Formaggi aqui no Seu Lunga também.

Deixei as compras em casa e retornei ao teatro. Só nos deixaram entrar na sala às 21h. Um teatro simples, mas bonito, com paredes de tijolo aparente. Os atores, um casal, já estavam no palco, sobre uma cama, enrolados, invertidos, com os pés próximos à cabeça um do outro, a mulher virada para a platéia, o homem apenas mostrando a parte de trás da cabeça para a gente. A cama estava um pouco pensa, transversal e inclinada – parece que a insólita geometria italiana não se aplica apenas às ruas. O encosto da cama, a cabeceira, ou seja lá que nome tenha, era espetacular, enorme, e se projetava, também pensa, transversal e inclinada, da cama para o teto por uns dois metros e meio. Cravados na madeira do encosto, como se afundados num cimento que era fresco e que se solidificou, uma série de objetos dos mais variados tipos: cabide, cadeira, carrinho de bebê... O cenário era só isso, e, acreditem, era mais do que o suficiente. Se a peça fosse só aquilo, assistir durante uma hora àquele casal dormindo, juro que daria meus 12 Euros por muito bem empregados. Aquela visão me inspirava a tal ponto que comecei a escrever mentalmente. Cheguei a fechar os olhos, e senti o arrepio criativo percorrer meu corpo. Eu havia entrado numa nuvem de possibilidades de histórias. A mais visível era a de um menino que, dormindo, nos contava a sua história, interligando os objetos visíveis em sua cama.

Estava eu nesse delírio pessoal, nessa experiência quase mística, quando, não sei por que infelicidade, resolveram dar início ao espetáculo propriamente dito. As luzes da platéia se apagaram e a iluminação se concentrou sobre a cama. A mulher começou a sussurrar, ainda em sonhos. De tanto sussurrar, acordou a si mesma, e continuou a falar pelo restante do espetáculo enquanto o outro ator ficou lá, praticamente imóvel, representando que dormia, ou dormindo de verdade, quem há de saber. A peça era um monólogo, eu devia ter desconfiado só de ter visto o anúncio. A atriz saiu da cama uma única vez, para representar que estava fazendo xixi, ou cocô, num penico, a apenas um metro da cama, e pouco depois retornou. Não entendi a maioria do que ela disse, ri uma única vez, contra os seis ou sete risos da platéia – a mulher à minha frente não conta, ela riu o espetáculo inteiro. De todo modo, compreendi o sentido geral da coisa. A mulher, em seu falar sozinho, de madrugada, reclamava do homem que estava dormindo, e um pouco de sua filha, relembrava antigos amores, idealizava futuros. Eu fiquei me perguntando por que não tinha ficado tudo como no início: o silêncio, a beleza simples e desorganizada do cenário, os atores dormindo. E, como eu não sabia da duração do espetáculo, tive medo de que durasse duas ou três horas.

Para minha sorte, no total, descontado o atraso inicial, deve ter durado uns quarenta e cinco minutos. A luz apagou, enfim. E quando acendeu, já era a luz da beira do palco, e não a luz da cama. A atriz veio receber seus aplausos. Eu também aplaudi, afinal sou uma pessoa educada. Depois ela foi para trás da cabeceira da cama e, na volta, trouxe o ator, que ainda estava com cara de sono. Brincadeirinha, ele parecia muito tímido, assustado até. Algumas pessoas riram quando eles apareceram de mãos dadas. Eu até pensei em rir também, pela segunda vez na noite, já que era mesmo curioso, quase ofensivo, um ator não fazer nada durante toda a peça e, no final, ainda vir receber aplausos. Mas me ocorreu outro pensamento, um pensamento que me fez querer ficar de pé e bater palmas com força até sangrar as mãos, e gritar não “Brava!” – porque descobri que o que para nós é exclamação (“Bravo!”), aqui é adjetivo, concordando em gênero com a pessoa a que se refere. Não, eu não queria dizer que a atriz era brava, quer dizer, muito competente naquilo que faz. Também não me veio a vontade de gritar “Bravi”, reconhecendo, no plural, o valor dos dois atores, juntos. Não, nada disso. Veio-me, pura e simplesmente, o desejo enorme de gritar “Bravo! Bravo!”, tanto para o ator quanto para o seu personagem. É preciso ser muito bravo para conseguir dormir, ou pelo menos ficar imóvel, enquanto uma mulher fala e reclama e delira durante quase uma hora. Sim, “Bravissimo! Bravissimo!”, pensei em gritar com toda a minha garganta. Que desempenho espetacular! Impressionante como aquele ator havia conseguido manter, sozinho, o clima inicial! E como eu havia perdido tempo tentando entender o que a atriz dizia, cansando meu juízo. Deveria ter me concentrado na imobilidade do ator e do cenário. A fala da mulher deveria ter sido, para mim, um murmúrio de fundo, uma música ambiente. Sim, era sobre isto o espetáculo, e é sobre isto a vida. Permanecer tranquilo enquanto o mundo gira. Dormir o sono dos justos enquanto a multidão agitada se ergue em reclames de injustiça.

Depois foi só caminhar até o número 13 da Via di Monte Uliveto, ler um pouco mais de Pinocchio – que está, graças a Deus, quase a ponto de tomar juízo – e adormecer sob as cobertas, mesmo a cama sendo reta e sem encosto de cabeceira.

Um comentário:

  1. Junoca, por um momento pensei que voce fosse se arrepender de ter ido ao teatro. Mas, como ateh agora nao tenho visto voce se arrepender de nada na nossa viagem, sosseguei e fui ateh o final. Melhor pra mim. Beijo

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