terça-feira, 12 de maio de 2009

Um anjo?

É difícil determinar a hora de acabar. Este diário, por exemplo, quando acabará? Comigo ainda na Itália, ainda na Europa, ou já no Brasil?

Neste momento, estou no aeroporto de Fiumicino, próximo de Roma. O meu voo só sairá daqui a umas sete horas, mas já estou aqui. Eu tinha duas opções: pegar um táxi no meio da madrugada ou pegar o penúltimo ou o último trem do dia.

Pegar um táxi de madrugada, talvez umas 3 e pouco da manhã, teria a vantagem de eu talvez dormir um pouco. Mas meu derradeiro lugar de hospedagem na Itália não me dava muita segurança. Na hora de escolher a hospedagem, eu tinha dito pra mim mesmo que queria um pouco mais de conforto pra terminar a viagem com disposição. Acabei escolhendo esse B&B (Bed and Breakfast, Cama e Café-da-manhã), e eu só descobri tarde demais que o banheiro era compartilhado. Na verdade, quando cheguei lá descobri que era um apartamento com quatro quartos e dois banheiros (um masculino, outro feminino). Uma acomodação totalmente amadora (se eu quisesse, teria conseguido sair sem pagar, e levando a chave do hotel) que parecia ter duas únicas vantagens: a proximidade a uma estação do metrô e a internet no quarto. Numa hospedagem assim, sem serviço de recepção nem pra me agendar um táxi, achei mais seguro pegar o trem, mesmo tendo que passar a noite toda no aeroporto.

Quando cheguei à estação do metrô, para só depois chegar à estação de trem, a máquina de venda de bilhetes dava um troco máximo de 4 Euro, e eu tinha apenas uma nota de 10 Euro. Pensei até em pedir a algum desconhecido para trocar a nota, mas passou pela minha cabeça uma outra idéia mais interessante: Comprar 6 bilhetes, receber meu troco de 4 Euro, pegar apenas um dos bilhetes e deixar os outros 5 bilhetes lá no recipiente da máquina. Fiquei sorrindo ao imaginar a cara de surpresa da próxima pessoa ao encontrar 5 bilhetes grátis.

Eu estava preparado para pegar o último trem, que sairia às 22:52, mas o metrô passou rápido, localizei sem muito problema a plataforma do trem para o aeroporto e cheguei faltando dois ou três minutos para o trem partir. Só faltava comprar o bilhete. A essa hora da noite, mesmo na estação principal de Roma, a Termini, só máquinas vendiam o bilhete. Só que eu tentava comprar e a máquina próxima à plataforma 25 dava uma mensagem de erro. Já estava desistindo de pegar aquele trem, e me preparando para ir até a parte principal da estação, onde há mais máquinas, pra enfim conseguir meu bilhete. Mas eis que me aparece, do nada, um homem que chegou e foi logo metendo o dedo no terminal da máquina que eu estava usando e,em trinta segundos, fez com que eu conseguisse meu bilhete. A máquina me deu um troco em papel, uma espécie de vale para eu pedir reembolso numa bilheteria. Eu jamais pensaria nessa possibilidade, e agradeci muito ao homem -- "Grazie, grazie, grazie mille" -- que, muito seriamente, disse apenas "Prego". Eu devia ter ficado olhando pra ele, pra ver se ele simplesmente sumiria no ar feito um anjo, mas corri para o trem, o Expresso Leonardo (da Vinci), que saiu pontualmente às 22:22. Lembrei do Expresso 2222, de Gilberto Gil. E fui.

Na viagem de 30 minutos até o aeroporto Fiumicino, até aqui, fiquei pensando no que possivelmente foi o meu maior aprendizado na Itália: esse fazer a coisa que pede pra ser feita, mesmo que pareça estúpida ou despropositada -- como deixar cinco bilhetes já comprados numa máquina. Foi assim, como se ouvindo um sussurro, que fiz muitas escolhas durante essa viagem. E, mesmo que algumas delas tenham parecido erradas, logo depois mostraram algum tipo de reviravolta que me agradou. No trem, me ocorreu que já existia uma expressão pra isso: "a vontade de Deus". Eu, o ar do pátio, aprendi aqui na Itália mais algumas lições do "espírito que sopra onde quer".

Então é quase meia-noite, eu consegui uma conexão wireless a 5 Euro por 5 horas, embora a bateria do meu computador vá acabar antes, e eu estou sentado com umas duas dezenas de pessoas que também vão passar a noite no aeroporto. Existe um único bar aberto, todas as lojas e os check-ins estão fechados. Eu estou sentado ao lado de duas portuguesas, deitadas nos bancos, cobertas com toalhas e conversando em um idioma que às vezes eu reconheço como sendo o português. Talvez elas durmam, e talvez eu seja o anjo acordado, velando pelo sono delas. Talvez eu durma, talvez algo inesperado aconteça. Talvez seja aqui o final da viagem. Um final sem final, como eu tanto gosto de ver no cinema. Um final como eu vi hoje no "La casa Sulle Nuvole". Sim, a casa do ar do pátio talvez seja lá sobre as nuvens. Talvez eu não esteja partindo da Itália, talvez eu não esteja voltando para o Brasil. Talvez, quando o avião estiver a 10.000 pés de altura, eu me sinta temporariamente em casa, antes que o avião volte a descer.

Não, minha casa não é lá, nem é aqui. Houve um tempo em que eu pensei que minha casa fosse uma construção. Houve outro tempo em que pensei que minha casa fosse uma pessoa. Hoje talvez eu esteja começando a pensar que minha casa é só aquele momento de paz, aquele momento em que faz sentido fazer coisas sem sentido, o conforto de saber a eterna essência das coisas e também sua constante variabilidade.

As portuguesas parece que dormiram. Será que ouviram a história que estou contando? Será que o som dos meus dedos sobre as teclas do computador é uma espécie de mantra, um contar carneirinhos? Acordaram. Devem ter escutado o rumor dos meus pensamentos ou a parada de meus dedos para reler o que eu havia escrito.

Este é um daqueles momentos em que você apenas quer continuar escrevendo, manter os dedos em movimento não porque tenha algo mais a dizer, mas porque existe um ritmo a ser obedecido. Mas a fé é derrotada pela razão, e a gente pára por não ter mais nada a dizer. Outra coisa que aprendi esses dias: é quando a gente não tem mais nada pra dizer que se abre a possibilidade das verdadeiras palavras. Eu fecho os olhos e escrevo: os dedos acostumados à posição das teclas do computador. Um dia a vida vai ser possível assim, de olhos fechados, não por automatismo, mas por confiança. Virá o dia em que será possível, ao mesmo tempo, adormecer as portuguesas com o som do teclado e dormir eu mesmo, sem parar de digitar um segundo sequer. Que seja assim também a viagem que não acaba, mas continua, mesmo que o próximo destino pareça um retorno pra casa...

5 comentários:

  1. Chamei o blog sem muita esperança de ver o finzinho do filme, achando mesmo que você já estava nos aeroportos e esquecida de que os mesmos tem wireless. Bendita tecnologia que me permitiu ver mais essas experiências italianas :o)
    Feliz viagem e feliz acolhida!
    Bj,
    Tia Monca

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  2. Tenho viajado contigo, mas em silêncio...
    Mas não poderia deixar de te desejar...
    Seja bem-vindo!

    Klaudya

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  3. Grato, Tia! Viajei e cheguei em paz. No finzinho do filme, vi quatro filmes durante o voo. :)

    Quietinha Klaudya. :) Grato pelo silêncio e pelo romper do silêncio. Estou sendo realmente bem-vindo.

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  4. Como é deliciosa sua narrativa! Estou encantada, não só aqui, mas também no "Crônica do Dia"!

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  5. Grato, Ana Lúcia. Bom tê-la acompanhando meus escritos.

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